quarta-feira, 9 de março de 2011

Relações Afetivas e as Mulheres Negras: novas linguagens hão de ser sentidas





Natália Maria Alves Machado


Poucas coisas tocam tanto a variadas pessoas quanto discussões sobre romances. Isso talvez por esse tema nos remeter à sexualidade e à família, temas vistos como muito importantes por quase tod@s em nossa sociedade. Filmes, programas de TV, literatura, histórias imemoriais, há muito que se contar sobre isso. Muito se fala sobre romantismos e anti-romantismos, todavia, um ou outro pólo não explora a infinidade de elementos envolvidos em relações dessa natureza.


Se é sabido que todas as pessoas do mundo não se comportam da mesma maneira, no assunto aqui tratado não seria diferente. Falando aqui do grupo social de pele negra, é notório que, apesar da grande variedade que abriga, são pessoas desconsideradas em sua origem cultural e em suas características, com um passado e um presente de dificuldades e privações, contudo, de resistência e criatividade, é sempre bom destacar.


Imaginem a maneira de se comportar diante da escravização, da discriminação, de diversas formas de violência. Bell Hooks, mulher negra, ativista e escritora norte-americana, fala em um de seus escritos, que a escravização e seus efeitos impactaram profundamente o ato de amar, isso se deu tanto da parte do grupo negro, quanto da parte dos outros grupos raciais que com ele vêm se relacionando (ou negando se relacionar!). A desumanização da pessoa negra, infelizmente até hoje em operação, impacta a sociedade como um todo e cria formas e formas de vínculos. Se mulheres de todas as cores são discriminadas pelo machismo, se negr@s de todos os gêneros são discriminad@s pelo racismo, é de se considerar a junção de discriminações que carregam as mulheres negras, sem contar as tantas outras marcas que na vida carregamos.


Quem nunca se questionou pelo fato de as mulheres consideradas bonitas na televisão/cinema serem quase sempre brancas ou com traços próximos a isso? Qual a razão de em nossa sociedade as musas da poesia, da música e das artes em geral, retratarem positivamente só tipo e cotidiano da ?delicada? mulher branca, retrato que em quase nada retrata a vida das negras? As mocinhas, as mulheres consideradas ?dignas?, as princesas, bonecas e demais figuras formadoras dos padrões e gostos serem majoritariamente brancas e tudo que remete a negritude ser considerado feio, impuro, animalizado?


E por qual motivo as piadas, cantadas e outros ditos populares, colocam a pessoa negra em local de ridículo e negação? ?Mulher branca pra casar, mulata pra fuder, preta pra trabalhar...?, ?nega do cabelo duro...?, ?neguinha safada...?, ?nega do suvaco fedorento...?, ?nega metida e abusada...?, ?não é que eu sou racista, mas negra é mesmo feia, é meu gosto?, entre outras atrocidades encaradas como ?tranquilas? expressões de opinião individual. Linguagem criadora e criatura de uma pulsão intolerante de violência e morte.


O racismo só se manifesta diretamente? Não e não! Agressões físicas e verbais diretas manifestam racismo sim, mas não só elas. Falta de representação é racismo violento! Desamor e desafeto também! Negação da história de um povo também é! Olhares, emanações, expressões, diversas formas de tratamento podem ser racismo que, se somado ao longo da vida, mata trajetórias e gera incríveis feridas em toda uma população, tolhe seu caminho. Todo um leque de ação no mundo vê e trata @ sujeit@ negr@ como alvo de violações, ainda que de forma supostamente velada e inconsciente.


Voltando ao papo dos romances, é comum ouvirmos pelas ruas mulheres negras dizendo: ?Faço tudo pela pessoa que amo, mas ela nunca assume um relacionamento comigo?; ?Comigo só querem sexo?; ?Me disseram que sou maravilhosa em tudo, que torcem pra eu ser feliz, mas que é melhor não se envolver...?, ?Na hora da paquera já chegam junto sem o menor cuidado, como se eu estivesse à disposição?; entre outras pérolas, isso quando há histórias pra narrar, pois é muito comum não haverem interações por sermos ignoradas. Sem contar as famílias nas quais, se alguém que as integra se relaciona com pessoas negras, geralmente ess@ alguém é desaprovad@ e a parceira é agredida por todo lado, inclusive pel@ parceir@ que geralmente não segura à barra e não vence seu próprio racismo arraigado. A possibilidade de filh@s negr@s é execrada, somos negadas em carne e alma.


Não é à toa que muitas mulheres negras envelhecem e morrem como vítimas de violência doméstica, chefas solitárias de lares inteiros, mães solteiras. Ainda sendo abordadas como mucamas que eram estupradas pelo senhor de escrav@s, amas de leite e babás dos filhos de mães brancas, corpos para turismo e exportação genocida, mulheres que se doaram muito e depois permanecem solitárias, zeladoras da casa e de todo capricho imposto pelo poder pigmentocrático.
Se a pessoa negra ocupa o lugar do que é feio, perigoso, impuro, incapaz, animalizado, do que deve só servir, como poderia essa pessoa ser desejada/vista como possível companheira, esposa, alguém que merece carinho, alguém para dar continuidade aos laços parentais e às tradições da família? Os gostos e intenções brotam da mente, mente bastante fruto da história e da cultura; nada é tão por acaso. Coloquemos todos os nossos gostos e desejos sob análise e vejamos o que os direciona.


Não adianta pessoas não negras dizerem que quem mais se discrimina é @ própri@ negr@, isso é querer tirar o corpo fora. Francamente, não é ato de heroísmo manter intacta a auto-estima quando o mundo só oferece desrespeito? Bem sabemos que não somos tratadas como delicadas ou frágeis, sabemos também que não queremos ser isso ou aquilo. Exigimos é sermos olhadas como seres integrais que podem ser da forma que quiserem ser. Mulheres de todas as cores não são simples objetos do desejo alheio!


Um dia ouvi uma história sobre a filha de uma amiga: ?Mãe, gosto de um menino na escola, mas ele não me quer porque diz que sou uma preta feia...?. A menina achava que o problema era ela, sofria com esse peso; afinal ninguém agüenta carregar um erro histórico como se fosse algo só seu. (Daí a importância da coletivização! Da troca com quem vive a mesma coisa!). Então, a mãe belamente respondeu: ?Filha, problema dele que é limitado, que só vê um tipo de beleza, azar dele que não tem olhos pra ver as várias belezas no mundo?. Linda resposta afirmativa! Será que o problema é só nosso, ou é, sobretudo, de uma sociedade limitada em seus arranjos e formas de percepção?


Mulheres negras em idade avançada costumam já ter uma história de poucos resultados na vida afetivo-sexual. Mulheres negras jovens não foram ou são as noras ideais do passado ou as minas descoladas do presente, peso de lugares e não lugares, poucos espaços de livre-expressão. Contudo, estamos sempre na glória de nossas reinvenções na maneira de existir apesar, a levar, transitando margens e cantando estradas. Sejamos nosso centro!


Há quem tenha a coragem de dizer que um artigo como esse é vitimização, o que nos soaria como insensibilidade em não encarar a força dos fatos. A intenção é que nós negras nos leiamos aqui como legítimas figuras de resistência que, como a terra, fazemos brotar flores do lodo. Como a terra, continuamos ocupando posições fundamentais na reprodução física, econômica e cultural de uma sociedade que nos rejeita. Ainda assim, sempre é tempo de exigir o que de nosso é o bem e o direito; mudar nosso foco, gritar por órgãos que possam captar o profundo de nosso toque, cheiro, gosto, visão, sons. E que possam nos oferecer tudo isso também. Há que se expandir a percepção. Há que se sentir novas linguagens ou esse mundo não será possível para nós. Ainda assim escolho primeiro festejar, ?Vem celebrar comigo, que todo dia alguma coisa tentou me matar, e fracassou...?. Somos sobreviventes, somos vivas viventes!

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