sexta-feira, 11 de março de 2011

Escola unitária


Gramsci entendeu que a educação tona-se dimensão estratégica na luta pela transformação social
Gramsci não era professor, mas um “educador” no sentido lato do termo. Não de um ponto de vista dogmático – que ele tanto condenou –, mas de um ponto de vista dialético, atualizando as teorias que estavam na base dos projetos socialistas de transformação social. Queria torná-las capazes de responder às novas questões apresentadas pelas mudanças históricas de seu tempo.

Não sendo pedagogo, Gramsci entendeu que a educação era uma dimensão estratégica na luta pela transformação da sociedade e apresentou uma das mais consistentes propostas para organizar a cultura no mundo capitalista, delineando o projeto da escola unitária. Por que a educação e a escola assumiram, para ele, importância tão decisiva?

Uma resposta para essa questão relaciona-se ao aprofundamento de seus estudos sobre o Estado capitalista, que o fizeram romper com teorias que dominavam o movimento socialista, do qual ele também fazia parte. Um dos principais aspectos dessa ruptura é a sua crítica à noção de que as ideias não tinham importância, de que eram apenas um produto do domínio do capital. Para tal concepção, se a coisa mais importante era derrubar o capital, a escola era uma questão secundária. Suas mudanças viriam depois da queda do capitalismo.

Gramsci condena a concepção fatalista do colapso do capitalismo, mostrando que as mudanças ocorridas a partir do fim do século 19 tinham modificado muito as relações entre Estado e sociedade. A partir dessa época, começam a cair as proibições ao direito dos trabalhadores de fazer greve, formar sindicatos, votar e ser votados, organizar partidos, publicar jornais. Com isso, vão se constituindo mediações entre a economia e o Estado, que se expressam na sociedade civil: o partido político, o sindicato, a imprensa, a escola.

Se o surgimento dessas instituições indica um processo de organização das classes subalternas, também mostra que os grupos dominantes atuam nas instituições da sociedade civil difundindo concepções de mundo com vistas a obter o consentimento das massas às suas ideias e ao seu governo. O trabalho realizado pela burguesia nas instituições da sociedade civil para garantir o consenso ao seu governo deixa aberta a disputa pela direção cultural da sociedade.

Essa ideia aproxima-se do que Gramsci entendeu como “trama privada”, chamando a sociedade civil de “aparelho ‘privado’ de hegemonia”. As instituições da sociedade civil são compreendidas como “trincheiras de luta” porque nelas se dá o confronto entre projetos sociais e políticos que são contraditórios entre si, no quadro da disputa pela hegemonia.

O trabalho para convencer as classes subalternas a aceitar o status quo não se restringe ao mundo das ideias. As concepções de mundo são acompanhadas de comportamentos: um modo de pensar tem um modo de agir que lhe é correspondente. Se as massas prestam o seu consentimento ao Estado capitalista, o Estado torna-se hegemônico, exercendo a direção intelectual e moral da sociedade. Percebendo essa “trama”, Gramsci descobre a importância de um movimento intelectual para difundir novas concepções de mundo que elevem a consciência civil das massas populares e produzam novos comportamentos, de uma reforma intelectual e moral. Descobre, enfim, a exigência política de conquistá-las para outra concepção de mundo, para que elas possam cindir com a direção do Estado capitalista.

É no âmbito da reflexão do Estado ampliado que Gramsci questiona as liberdades civis e políticas do Estado democrático. De nada valiam os direitos conquistados com a ampliação da democracia, como o direito político do cidadão de escolher seus dirigentes e poder ser dirigente, se as massas tinham dificuldades para se organizar politicamente, para se expressar com coerência e de forma unitária e ainda lhes faltavam elementos conceituais para criticar seus governantes.

Esse questionamento mostra sua preocupação em identificar meios para elevar cultural e politicamente as massas. Trata-se de uma perspectiva que vai muito além da formação para a cidadania. Gramsci olha para a educação como um homem político. Pensa um programa educacional, procurando identificar métodos e práticas que propiciem aos trabalhadores sair da condição de subalternidade.

Centro unitário de cultura e escola unitária

Gramsci defende a organização de um “centro unitário de cultura”, cujo objetivo é a “elaboração unitária de uma consciência coletiva”. Sua reflexão envolve análises sobre diferentes possibilidades metodológicas que poderiam propiciar a superação do “senso comum” e a formação do pensamento filosófico. Envolve também a discussão das instituições que atuam na formação de intelectuais, tais como a imprensa e, principalmente, a escola. E o mais importante é que um “centro cultural unitário” precisaria ter uma referência filosófica para orientar o confronto ideológico, seja com o senso comum, seja com as concepções de mundo dominantes. Defende, então, que a “filosofia da práxis” constitua a referência crítica do “centro cultural unitário”.

O “princípio unitário” relaciona-se à luta para a igualdade social, para a superação das divisões de classe que separam a sociedade entre governantes e governados. Ao delinear o “programa escolar” que deveria servir de guia para a organização de um centro de cultura integrado à luta ideológica para a conquista da hegemonia, Gramsci assinala que o princípio unitário ultrapassa a escola como instituição: “O advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário se refletirá, por isso, em todos os organismos de cultura, transformando-os e dando-lhes um novo conteúdo”.

A proposta educacional apresentada por Gramsci é a da “escola unitária”. Para esboçá-la, o autor dedica grande atenção à escola clássica, humanista, existente antes da reforma de Giovanni Gentile, introduzida na Itália no início dos anos 1920. Mesmo não sendo democrática, a “velha escola” tinha métodos de ensino que propiciavam a aquisição de capacidades dirigentes e poderiam ser reorientados para as exigências populares de acesso ao saber. O seu princípio poderia ser sintetizado “no conceito e no fato do trabalho”. Estando em crise, ela não podia mais responder às exigências advindas com as mudanças econômicas, sociais e políticas do mundo industrial e, por isso, era preciso encontrar um novo princípio educativo. Frente a essa crise, Gramsci identifica pelo menos três tendências para a organização da escola, com as quais polemiza: a “escola ativa”, a tendência à proliferação de escolas profissionais, a escola única do trabalho.

A “escola ativa” correspondia à iniciativa de pedagogos idealistas, como Gentile, que queriam tomar esse modelo como diretiva da reforma da escola e substituir a escola humanista. Gramsci critica a reforma de Gentile e o fato de a escola ativa ainda estar numa “fase romântica”, na qual foram acirrados os elementos de luta contra a escola jesuíta. Contudo, incorpora ao programa da escola unitária muitos aspectos do princípio da atividade, como a relação ativa entre mestre e aluno. Aliás, é esse princípio que Gramsci relaciona ao conceito de hegemonia, retirando-o do ambiente escolar e alargando-o para toda a sociedade.

Quanto às escolas profissionalizantes, Gramsci considera que sua multiplicação se realizava sem um princípio educativo claro. Ao oferecerem uma pluralidade de qualificações técnico-profissionais, elas pretendiam dar aos trabalhadores a ilusão de que a formação profissional possibilitava o acesso a posições de poder e prestígio na sociedade. No entanto, as escolas profissionais contribuíam para garantir a divisão de classes, já que seu ensino não estava voltado para preparar dirigentes. Elas contribuíam para manter as estratificações sociais em formas “chinesas”.

Para responder aos problemas gerados pela crise da escola humanista e face aos limites das tendências então emergentes, que mantinham as divisões entre governantes e governados, Gramsci indica a escola única, surgida no processo da Revolução Russa. Reforça seu princípio da unidade do trabalho intelectual e manual, mas critica sua proposta de profissionalização precoce, o que a impossibilitava de formar um homem completo. Busca, então, definir uma formação que propicie às classes subalternas não apenas obter qualificações técnicas que lhes permitam se inserir no mundo produtivo como também adquirir uma sólida formação geral que lhes possibilite ampliar sua esfera de participação no governo da sociedade.

O princípio da escola unitária é o princípio do trabalho, formulado em estreita relação com a escola humanista e com sua perspectiva de formar dirigentes. Mas a ideia de trabalho não significa cingir a educação ao trabalho da fábrica, mas partir da “técnica-trabalho” para atingir a “técnica-ciência” e a “concepção histórica e humanista”. Esse é o seu princípio para formar o “dirigente”, isto é, especialista + político.

Para Gramsci, portanto, a formulação de uma proposta para a educação que integre um programa político em direção à igualdade social é referência para a crítica às desigualdades produzidas pelo sistema capitalista e que se exprimem nas diversas instâncias da sociedade e da cultura, como também na escola. Refere-se à luta pela unificação do ser humano como possibilidade de realização, como devir.

Rosemary Dore

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