A superioridade da democracia socialista
Para prosseguir a luta pelo socialismo, é indispensável reexaminar as experiências passadas e refletir no terreno teórico a relação entre socialismo e democracia
Num momento histórico como este em que vivemos – um momento de ofensiva ideológica capitalista e de refluxo das lutas socialistas proletárias, ambos em escala mundial –, a reflexão sobre a relação entre socialismo e democracia é obrigatória para todas as correntes da esquerda marxista. Se quiser intervir na reorganização, em novas bases sobre os escombros das sociedades pós-revolucionárias – do movimento socialista das classes trabalhadoras manuais –, a esquerda marxista deverá tirar todas as lições políticas possíveis da observação do passado recente. E terá, em particular, de colocar a questão da democracia no centro de sua reflexão sobre o programa socialista. Não queremos dizer com isto que o fracasso das diversas experiências históricas de construção do socialismo, em nosso século, seja devido apenas à incapacidade dos partidos revolucionários de implementar, após a vitória político-militar, uma política firme de construção de uma democracia socialista e proletária. Ao déficit registrado nas políticas de construção da democracia socialista acabaram se somando, na realidade do processo histórico, outras insuficiências. Tal deficit desempenhou um papel definido na deterioração das múltiplas experiências revolucionárias e por isso é obrigatória, caso se queira que as novas lutas socialistas proletárias evitem os erros do passado, a reflexão sobre a relação entre socialismo e democracia. Esclareça-se, entretanto, que apontar uma necessidade de tal reflexão não equivale a cair na posição dos intelectuais "liberais" (vale dizer, adeptos do capitalismo), antigos ou recentes. Para estes, não é apenas nas políticas de construção da democracia socialista que se registra um déficit: a própria teoria política marxista, em seu conjunto, lhes parece coerente de uma reflexão sobre a questão da democracia. Ora, esses intelectuais, ao fazerem esse tipo de afirmação (com graus diferentes de sinceridade e de conhecimento da matéria), afastam-se da verdade. A teoria marxista clássica contém inúmeras formulações sobre a questão da democracia; os marxistas atuais, portanto, não se encontram teoricamente desamparados no seu esforço para aprofundar a reflexão sobre a relação entre socialismo e democracia. “Os liberais pensam que a única democracia é a que existe no sistema capitalista”. Nesse terreno, a referência fundamental ainda é o texto de Marx sobre a Comuna de Paris, A Guerra Civil na França (1871). Tirando lições políticas dessa experiência de governo popular, no citado texto, Marx propõe um programa de construção de uma democracia proletária. Esse programa deveria ser sempre levado em conta pelos marxistas em suas reflexões sobre a relação entre socialismo e democracia; mas isso não significa que ele deva ser encarado como um programa definitivo, não sujeito a ser atualizado e aprofundado. Ao contrário, deve-se tomá-lo pelo que é: o programa possível naquela quadra histórica. Também Lênin abordou a questão da democracia socialista e proletária em inúmeros dos seus textos políticos – O Estado e a revolução, A revolução proletária e o renegado Kautsky, As tarefas imediatas do poder soviético, entre outros. Quando consultamos essas e outras obras de Lênin, constatamos que esse autor não se limita a propor algumas fórmulas político-práticas – de resto, preciosas – sobre a democracia proletária. Ele também levanta, nesses trabalhos, importantes questões técnicas sobre a democracia. Em A revolução proletária e o renegado Kautsky, por exemplo, Lênin detecta o fenômeno do desenvolvimento contínuo e progressivo da democracia ao longo da história da humanidade: a democracia burguesa é superior, enquanto democracia, às democracias pré-burguesas (escravista, feudal); mas a democracia socialista e proletária é superior, enquanto democracia, à democracia burguesa. A esquerda marxista atual deve, em suas reflexões sobre a relação entre socialismo e democracia, levar em conta as análises e formulações dos clássicos do marxismo, como Marx ou Lênin. Porém, ela não pode se deter aí. Impõe-se também aproveitar, nessa reflexão, as lições da prática social contemporânea: as experiências revolucionárias das massas trabalhadoras e suas formas de luta e organização nas formações sociais capitalistas. “A conceituação da democracia proletária parte do reexame da democracia burguesa”. É importante, para o marxistas atuais, começar a reflexão sobre a relação entre socialismo e democracia pela pergunta: por que os intelectuais "liberais" negam que exista na teoria política marxista uma abordagem da questão da democracia no socialismo? A resposta é simples: os "liberais" pensam que a única democracia possível e desejável nas sociedades contemporâneas é o Estado democrático, tal qual ele existe nas formações sociais capitalistas. Por isso negam legitimidade ao trabalho de construção do conceito de democracia proletária e de estabelecimento de uma distinção teórica rigorosa entre a democracia proletária e a democracia burguesa. Qualquer reflexão marxista sobre o lugar da democracia no programa socialista deve tomar, então, esse caminho, contestado pelos "liberais". Deve-se procurar demonstrar não ser possível construir o socialismo se se mantém um Estado democrático tal qual ele existe no capitalismo, e ser necessário construir um novo Estado democrático, dotado de características institucionais e funcionais inéditas – uma democracia socialista e proletária. O trabalho de conceituação da democracia socialista e proletária deve começar, necessariamente, pelo reexame das características essenciais da democracia burguesa. Caso esse reexame não se realize, é possível que os marxistas se submetam à caracterização "liberal" do Estado democrático existente nas formações sociais capitalistas. E nessa hipótese o seu trabalho teórico, marxista, resumir-se-ia a "trocar o sinal", de positivo para negativo, da democracia burguesa; isto é, evidenciar o seu caráter de classe e os limites políticos depois de ter aceito (tácita ou explicitamente) a descrição das instituições políticas democrático-burguesas proposta pelos "liberais". Mas vejamos como os "liberais" definem a democracia. O regime político democrático para eles é caracterizado pelos seguintes elementos: a) pluripartidarismo ilimitado, expresso no terreno do processo eleitoral (concorrência partidária sem limites no terreno eleitoral); b) plena vigência de liberdades políticas para todos, sem qualquer discriminação de classe ou ideológica; c) vigência efetiva da mais estrita legalidade e, portanto, de um sistema de garantias às liberdades individuais (1). Quando os "liberais" propõem a sua definição de regime político democrático, apresentam-na como se ela fosse a transcrição das características próprias aos regimes políticos democráticos concretamente existentes nas formações sociais capitalistas contemporâneas. Ora, o que um exame – ainda que sumário – desses regimes nos revela é algo bem diferente. Em primeiro lugar, o pluripartidarismo aí vigente é um pluripartidarismo limitado; ele permite apenas uma "concorrência partidária capitalista", da qual estão excluídos os partidos que sustentem abertamente um programa revolucionário de dissolução do aparelho de Estado capitalista e de construção, sobre bases radicalmente novas, de um aparelho de Estado socialista. No caso de tais partidos serem incorporados à concorrência partidária no terreno eleitoral, no plano da ação legal e institucional eles terão de silenciar sobre essa parte do seu programa. Em segundo lugar, o regime político democrático das formações sociais capitalistas concretas permite, de fato, o exercício de liberdades políticas. Porém, essas liberdades políticas são desigualmente usufruídas pela classe capitalista e pelas classes trabalhadoras, dada a crônica desigualdade de forças de uma e das outras. Além do mais, o leque das liberdades políticas efetivamente usufruídas é em si mesmo limitado, dada a ausência da liberdade de se organizar e lutar pela destruição do aparelho de Estado capitalista. E por último, a legalidade e o sistema de garantias aí vigentes, não são incondicionais; eles prevêem a possibilidade de sua própria suspensão – por meio dos dispositivos constitucionais do estado de sítio e do estado de emergência – caso esteja em risco a preservação da ordem social. Essa legalidade e esse sistema de garantias condicionam, portanto, a sua subsistência à preservação da paz social e da estabilidade política, ambas definidas de modo intencionalmente vago (2). “A burocracia estatal monopoliza o momento supremo do processo decisório do Estado”. Os "liberais" também propõem uma caracterização da forma de Estado democrática. A seu ver, esta se caracteriza, basicamente, por: a) soberania do Parlamento, eleito pelo sufrágio universal; b) separação, independência e equilíbrio dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Ora, a realidade cotidiana dos Estados burgueses democráticos é bem outra. Em primeiro lugar, o órgão de representação política de todos os cidadãos – o Parlamento – está sempre submetido, no terreno do processo decisório estatal, à burocracia de Estado. Esse desequilíbrio (sempre favorável à burocracia estatal) das capacidades decisórias efetivas do Parlamento e da burocracia de Estado é evidenciado pelo fato de o Parlamento, enquanto "poder Legislativo", estar desprovido da capacidade estratégica de executar as suas próprias decisões. A burocracia estatal é o "poder Executivo" que monopoliza, até mesmo no mais "parlamentarista" dos Estados democrático-burgueses, o momento supremo do processo decisório estatal, ou seja, a execução da política de Estado. Em segundo lugar – como consequência do que foi exposto acima – , não há independência nem equilíbrio na relação entre os "Três Poderes" do Estado burguês democrático; no plano do processo decisório estatal o que ocorre é a dominação do órgão de representação política (Parlamento) por um aparelho burocrático hierarquizado e verticalizado, que deriva a sua legitimidade de procedimentos internos de avaliação da competência administrativa, e não de qualquer mandato popular. Essa dominação existe mesmo quando o Parlamento é um órgão ativo e palco de intensos debates políticos, pois a capacidade de executar a política de Estado está concentrada nas mãos da burocracia de Estado (3). Colocados agora diante da verdadeira face da democracia burguesa, e não de sua representação idealizada – construída pelos "liberais" –, podemos enfrentar a seguinte pergunta: o processo de construção do socialismo se compatibiliza com uma democracia desse tipo? A resposta a essa questão é negativa. O Estado que viabiliza o processo de construção do socialismo – o Estado proletário – tem um caráter democrático. Mas essa democracia tem características institucionais radicalmente distintas daquelas ostentadas pela democracia burguesa. Examinemos o regime político democrático peculiar ao socialismo. Neste, o tipo de pluripartidarismo limitado vigente no capitalismo cede lugar a um outro tipo de pluripartidarismo limitado – a concorrência partidária capitalista é substituída pela concorrência partidária socialista. E desta estarão alijados todos os partidos que rejeitem o mínimo denominador comum do programa socialista proletário: socialização efetiva dos meios de produção; construção de uma sociedade sem classes; promoção do ataque à divisão capitalista do trabalho, nas suas diferentes dimensões; e implementação da desestatização crescente das práticas administrativas, com vistas a abrir caminho para o desaparecimento final do Estado como aparelho especializado e separado das massas. É o caso, obviamente, dos partidos representativos de qualquer fração da classe dominante (capital industrial, capital comercial, capital financeiro, propriedade fundiária etc.); mas também é o caso dos partidos representativos das classes da pequena produção (campesinato independente, artesãos, pequenos comerciantes). Isso não significa que a concorrência partidária socialista implica a supressão dos partidos pequeno-burgueses. Porém, caso se queira avançar – e não recuar – no processo de construção do socialismo, tais partidos devem ser conduzidos à condição de partidos subalternos, impossibilitados de participar do mecanismo de rotação dos partidos pelo aparelho de Estado socialista. “Um partido proletário se mantém no poder pela sua capacidade de direção ideológica”. No extremo oposto, a concorrência partidária socialista exclui a vigência de um sistema oficial de partido único, fundado na suposição da existência de um laço exclusivo de representatividade entre um único partido socialista e os interesses políticos do proletariado. As divergências entre os partidos que se mostram envolvidos no processo de construção do socialismo não exprimem, necessariamente, a oposição entre interesses de classes distintos. Elas podem resultar de diferenças menores, que não põem em perigo o processo de construção do socialismo. Em suma, não há nenhum argumento teórico que nos induza a atribuir obrigatoriamente a um único partido socialista proletário a grande tarefa histórica da construção do socialismo. Esclareça-se, entretanto, que a concorrência partidária socialista admite a emergência, na prática, de um sistema de partido dominante (4). Nesse caso, um dos partidos da frente política socialista (5) governa por um período mais ou menos longo, por ter conquistado espontaneamente o apoio da maioria dos trabalhadores. Em tal sistema, um partido socialista proletário se mantém por um bom período à frente do aparelho de Estado socialista, não como consequência do exercício da força e sim pela sua capacidade de direção ideológica. Também o leque de liberdades políticas efetivamente usufruídas na democracia socialista não pode ser ilimitado. Se na democracia burguesa está excluída a liberdade de se organizar e de lutar pela derrubada do Estado capitalista, na democracia socialista está excluída, simetricamente, a liberdade de se organizar e lutar pela derrubada do Estado proletário. Essa restrição é necessária porque parte das classes populares – aquelas que não se enquadram numa situação de classe proletária no sentido estrito – tende a se mostrar reticente (se não hostil) com relação ao projeto socialista (tais classes podem, entretanto, ser conquistadas posteriormente pelos resultados objetivos da política de longo prazo de construção do socialismo). Mas tal restrição não pode, em nenhum caso, servir como pretexto para o empastelamento de partidos e organizações efetivamente integrados à frente política engajada na construção do socialismo. Quanto à legalidade e ao sistema de garantias: se ambos são flexíveis na democracia burguesa, na medida em que discriminam as condições de sua própria suspensão, também devem sê-lo na democracia socialista. Esta não se compatibiliza com um legalismo superconstitucionalista e com uma rigidez jurídica excessiva. Essas características parecem, à primeira vista, assegurar a sobrevivência e a incolumidade do indivíduo colocado isoladamente diante do Estado. Porém, elas se configurariam como instrumentos de potência da burocracia de Estado socialista, a serem usados sobre e contra as massas trabalhadoras. E o uso de tais instrumentos bloquearia a necessária mudança progressiva na relação de forças entre burocracia estatal e massas trabalhadoras, em favor destas últimas, ao longo do processo de construção do socialismo. O regime político democrático socialista implica uma legalidade dinâmica, que resulta de práticas como: a) a promoção da flexibilidade constitucional, isto é, criação de maiores facilidades para a revisão constitucional; b) a descentralização das fontes da legalidade (passa a ser fonte de legalidade, além do aparelho burocrático, a prática das massas trabalhadoras organizadas em sindicatos, comitês etc.). Esclareça-se, entretanto, que a flexibilidade da legalidade socialista não pode ser total e absoluta. Tal legalidade implica a fixação de pelo menos uma regra do jogo, que coincide com a própria essência da democracia socialista: a que garante a legitimidade do pluripartidarismo socialista proletário e que proíbe a implantação de um sistema oficial de um partido único, sem, no entanto, condenar a emergência, na prática, de um sistema de partido dominante. “O novo Estado deve passar as tarefas estatais para as massas trabalhadoras”. Examinemos agora a configuração do aparelho de Estado peculiar ao socialismo. Nenhum processo de construção do socialismo pode ser conduzido por um Estado democrático-parlamentar, tal qual ele existe nas formações sociais capitalistas. A dimensão mais profunda desse Estado não é a existência de um Parlamento eleito pelo sufrágio universal, e sim a existência de um aparelho burocrático, verticalizado e organizado de modo despótico, que reivindica o controle monopolítico do processo decisório estatal. Mas isso não significa que as suas decisões são desfavoráveis aos interesses políticos gerais da classe capitalista. Ao contrário, significa que a dominação política desta classe se concretiza, em última instância, por meio da ação da burocracia estatal. Ora, se esse aparelho burocrático, separado das massas trabalhadoras e armado de privilégios e imunidades, fosse conservado após uma revolução social orientada por um programa socialista, a burocracia de Estado tenderia a se converter numa nova classe dominante e exploradora. Ou seja, a burocracia de Estado subsistente iria se empenhar, de modo organizado ou não, em desnaturar o esforço popular de socialização dos meios de produção. A estatização e a centralização dos meios de produção seriam por ela utilizados como instrumentos para o estabelecimento de um rígido controle burocrático, de cunho antiproletário e anti-socialista, sobre a economia nacional. Por essa razão, Lênin lançou a palavra-de-ordem revolucionária: "Destruição do aparelho burocrático do Estado burguês" e, do ponto de vista teórico, definiu esse processo de destruição como uma empreitada de construção de um novo Estado – um Estado proletário, ou uma ditadura do proletariado –, que já se configura em parte como um Estado que não é mais Estado. O que é esse Estado? Nele, a burocracia de Estado continua a existir, mas já perdeu os seus privilégios e deixou de estar separada das massas trabalhadoras. Estas exercem sobre ela um estrito controle, por meio de disposições como: a) a realização de eleições diretas para a escolha dos funcionários estatais, sendo votantes as massas trabalhadoras; b) a atribuição de um caráter fechado e imperativo ao mandato desses funcionários, que devem obedecer às instruções estritas das massas trabalhadoras, ao invés de se portarem como burocratas todo-poderosos; c) a fixação do princípio da revocabilidade do mandato dos funcionários estatais; d) a proibição de qualquer tipo de privilégio burocrático, como a superioridade salarial diante das massas trabalhadoras, as imunidades, a vitaliciedade etc. Ressalte-se que essa nova configuração do aparelho de Estado, no socialismo, decorre da substituição, no processo de organização do aparelho burocrático, do critério burocrático-capitalista da competência administrativa (só suscetível de auto-avaliação), pelo critério democrático-socialista da representatividade política. É também nesse sentido que Lênin, em A revolução proletária e o renegado Kautsky, sustenta que o Estado proletário é infinitamente mais democrático que os anteriores, inclusive o mais aperfeiçoado Estado democrático-burguês. “O elemento-chave é a participação ativa das massas no processo de 'desestatização'”. Mas esse Estado proletário tem, para Lênin, um caráter democrático também pelo fato de essa nova burocracia, controlada pelas massas trabalhadoras, implementar uma política de simplificação das tarefas administrativas e de democratização do acesso a tais tarefas. Essa política coloca as massas trabalhadoras em contato, por meio da promoção da passagem de todos pelas funções estatais, com o trabalho administrativo. Desse modo, ela cria as condições materiais e humanas para um progressivo deslocamento das tarefas administrativas estatais para o conjunto das massas trabalhadoras. Nessa medida, tal política viabiliza a deflagração de um processo de deperecimento progressivo do Estado, que deve culminar com a sua desaparição (continuando a ser esta uma meta fundamental do marxismo revolucionário). Essas são, portanto, as duas dimensões fundamentais da democracia socialista para Lênin. De um lado, a burocracia estatal é controlada em termos estritos pelas massas trabalhadoras; de outro, o Estado proletário implementa políticas que vão criando condições para um progressivo deslocamento das tarefas administrativas estatais para o conjunto das massas trabalhadoras. É somente nessas condições que a participação popular na definição da política para o conjunto da sociedade deixa de ser uma pura forma ou princípio – como nas democracias burguesas, onde a soberania popular do Estado é pura encenação – para se converter na realidade profunda do processo político. Nessa perspectiva, a democracia socialista se confunde com a própria essência do Estado proletário. Não poderá, portanto, haver construção do socialismo se o aparelho de Estado não assumir essa nova configuração democrática. Tal posição conflita com uma certa concepção "liberal" de socialismo – veja-se, por exemplo, Norberto Bobbio, Qual socialismo? –, segundo o qual o processo de construção do socialismo pode ser conduzido indiferentemente por um Estado democrático ou por um Estado ditatorial. O marxista atual, ao analisar a concepção leninista de Estado proletário, deve fazer uma dupla ponderação. De um lado, deve reconhecer que o acervo das idéias de Lênin sobre a questão deve ser preservado. De outro, deve constatar que existe um ponto vazio na teoria leninista do Estado proletário e da democracia socialista, que consiste na ausência da pergunta: Quem – isto é, que grupo social – conduz o processo de deslocamento progressivo das tarefas administrativas para as massas trabalhadoras? Ou ainda: Quem dirige o processo de desestatização progressiva da formação social onde se constrói o socialismo? Experiências políticas recentes – mais especificamente, as derrotas políticas sofridas pelas massas trabalhadoras nas sociedades pós-revolucionárias – ensinam-nos que não se deve depositar uma confiança irrestrita na burocracia do Estado socialista, nem aguardar sua própria iniciativa na promoção de um processo de desestatização da formação social onde se constrói o socialismo. Tal processo é, em última instância, um processo de desvanecimento da burocracia como grupo social particular. Por isso, não é lógico esperar, numa ótica materialista, que ela promova a sua própria extinção. A resposta correta àquela pergunta parece-nos estar no texto La rectification du “Manifeste Communiste”, do filósofo francês Etienne Balibar (6): são as massas trabalhadoras, organizadas pela base em comitês, que devem assumir a iniciativa de promover o deperecimento progressivo do Estado socialista. E mais: o desempenho dessa tarefa histórica pelas massas trabalhadoras implica empurrar a burocracia estatal para um espaço de atuação cada vez mais estreito, bem como abocanhar progressivamente as suas competências administrativas. Isto significa que a construção do socialismo implica o desenvolvimento de uma relação de forças entre os agentes do poder de Estado e os agentes do poder político exercido pela via extra-estatal (organizações de massa). E essa relação só pode ser uma relação de soma-zero, onde tudo o que é perdido por um dos termos da relação se converte num ganho para o outro pólo. É este, portanto, o elemento novo a ser agregado às formulações marxistas clássicas sobre a democracia socialista e proletária: a participação ativa das massas trabalhadoras não apenas na escolha da burocracia estatal e no exercício de um rigoroso controle sobre ela, mas também na desestatização crescente da formação social onde se constrói o socialismo. Num momento histórico em que a burguesia lança a palavra-de-ordem da desestatização (certamente, limitada) no quadro das formações sociais capitalistas, e prega a substituição do "Estado do bem-estar social" por um "Estado mínimo", impõe-se que a esquerda marxista tire proveito, no plano da luta ideológica, dessa conjuntura de esfacelamento do Mito burguês da inevitabilidade da intervenção crescente do Estado nas "sociedades industriais modernas". Para tanto, deve aprofundar a reflexão sobre as formas de luta popular desestatizante possíveis na democracia socialista. Notas (1) Não podemos reexpor aqui os conceitos de regime político e de forma de Estado. Remetemos o leitor a um nosso texto anterior Democracia, São Paulo, Ática (1987), Série Princípios n° 112, Capítulo 1, "O conceito de democracia", item “Forma de Estado e regime político". (2) Essas características da democracia burguesa são apontadas por Lênin num texto que é precioso para teoria política marxista. Como iludir o povo com os slogans de liberdade e Igualdade. (3) Esclareça-se que a divisão do Estado democrático em três poderes é mais uma ficção elaborada pelos "liberais". O "poder Judiciário" é, em tudo – como modo de recrutamento, organização e atuação –, um segmento da burocracia estatal. (4) Esse conceito foi formulado pelo cientista político francês Maurice Duverger. Trabalhando numa perspectiva liberal, Duverger não examina a possibilidade de adequação entre um sistema de partido dominante e o processo de construção do socialismo. Limita-se apenas a detectar a presença desse sistema em formações sociais como a França da Terceira República ou como os países africanos e asiáticos em suas fases de descolonização e de construção da independência nacional. Desse autor, consultar Os partidos políticos, RJ, Zahar, 1970, p. 342-346; e Sociologia política, RJ, Forense, 1968, p. 386-388. (5) Referimos-nos, aqui, exclusivamente à frente política socialista; ela é distinta de uma frente democrático-popular, da qual participam partidos (como os pequeno-burgueses) que jamais poderiam desempenhar um papel dirigente no processo de construção do socialismo. (6) Esse ensaio consta no livro de Etienne Balibar, Cinq études du matériallsme historique, Paris, Maspero, 1974.
Por Décio Saes
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