sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A EXPERIÊNCIA SUL-AFRICANA DE REFORMA AGRÁRIA



Na África do Sul, a terra é hoje não apenas uma das mais definidoras questões políticas e desenvolvimentistas, mas talvez a mais intratável. A persistente concentração fundiária baseada na segregação racial só será resolvida por uma reestruturação total do programa de reforma agrária ou por uma transformação radical nas relações de propriedade pelo próprio povo. Os rumos do país dependem, em larga escala, da imediata e urgente resposta do governo às necessidades e demandas de 19 milhões de pobres e sem terra.
Nos últimos anos, há indícios perturbadores das intenções do governo a esse respeito: o estreitamento do programa de redistribuição de terras, carro-chefe para reverter a estrutura distorcida herdada do apartheid; a promoção de uma elite comercial rural negra, em detrimento da grande população de trabalhadores sem terra; a atitude laissez-faire face às crescentes reivindicações da sociedade civil para resolver a crise agrária no país.
A reforma agrária é essencial, não apenas em termos de uma reparação histórica aos séculos de dominação colonial, mas também para o processo de construção democrática da nação Sul-Africana. Somente a reforma agrária pode modificar as relações sociais e econômicas nas áreas rurais; um ponto central na luta democrática-nacional para transformar as formações coloniais de classe, que combinam desenvolvimento capitalista com opressão social.


1. BREVE HISTÓRICO

A segregação racial começou em 1658, quando os Khoi foram informados de que não poderiam mais habitar os territórios a oeste dos rios Salt e Liesbeck, e prosseguiu no século XIX ao serem criadas as primeiras reservas pelos governos britânico e bôer (Programa de Consciência Humana, 1989).
A Lei de Terras Nativas foi aprovada em 1913. Essa lei restringiu a área para ocupação africana e separou os arrendatários de suas terras, conseqüentemente substituindo os contratos de arrendamento por outros de aluguel da força de trabalho. Apenas 10% das terras eram reservadas aos negros. Dez anos depois, o princípio de segregação racial em áreas residenciais urbanas foi estabelecido. Em uma tentativa de minimizar os problemas resultantes do deslocamento forçado para as reservas, o governo planejou algumas medidas, tais como: limitação do rebanho, separação de campos e pastos das áreas residenciais e remoção das famílias para vilas localizadas longe das áreas agrícolas.
Em 1936, a Lei de Terra e Desenvolvimento Confiável alocou terras já prometidas para as reservas. A ocupação de terras tornou-se ilegal. Em 1937, foi aprovada a Emenda às Leis Nativas que proibia africanos de comprar lotes urbanos. A Lei de Áreas de Grupo, promulgada em 1950, segregava racialmente as áreas de residência das de negócios e controlava negociações inter-raciais de propriedade. Em uma tentativa subseqüente de assegurar o desenvolvimento separado e desigual, a Lei de Autoridades Bantu foi promulgada, em 1951. Essa lei permitia o estabelecimento de autoridades tribais, regionais e territoriais. No mesmo ano, para garantir a completa ilegalidade da ocupação de terras, a Lei de Prevenção à Usurpação foi aprovada, permitindo ao governo estabelecer campos de reassentamento para excedentes populacionais despejados das fazendas brancas.
A Lei de Reassentamento Negro, de 1954, autorizava o Estado a remover africanos de qualquer área do distrito de Joanesburgo e áreas adjacentes. Em 1959, a Lei de Promoção de Auto-Governo Bantu criava o Bantustão e determinava que, a partir de então, as reservas seriam a terra natal dos negros sul-africanos. No começo dos anos sessenta, estabeleceram-se os primeiros campos de reassentamento para abrigar posseiros expulsos, agricultores indesejados e populações urbanas desempregadas. Em 1964, a Emenda às Leis Negras foi aprovada e, juntamente com a Lei de Confiança Nativa, teve por finalidade abolir a posse e a ocupação pelos trabalhadores das fazendas.
As leis de terra e outras leis relacionadas, o planejamento de colônias, as remoções forçadas e o sistema do Bantustão contribuíram para superpovoar as terras destinadas às populações negras. Estima-se que mais de 3,5 milhões de africanos tenham sido removidos e realocados entre 1960 e 1980 (Programa de Consciência Humana, 1989). Como resultado, o contingente populacional nestas áreas aumentou drasticamente. Em QwaQwa, por exemplo, a população aumentou de 25.334 para 500.000 habitantes, no período de 1970 a 1983 (Indicador Sul-Africano, 1989). Enquanto a densidade demográfica nesta cidade chegava a cerca de 500 hab/km2, nas áreas negras a média calcula-se em 151 hab/km2 e no restante do país era de apenas 19 hab/km2. Viviam em áreas urbanas, em 1980, 88% dos brancos e 39% dos negros. Também é estimado que, em 1985, os brancos tinham um excedente habitacional de 37 mil unidades e os negros um déficit de 282 mil habitações no campo e 342 mil na cidade (Programa de Consciência Humana, 1989).
Esse resumo histórico indica a extensão da desigualdade na alocação de recursos na África do Sul. Contudo, o Estado começou a perceber que os negros deveriam ter direito ao solo urbano e, assim, introduziu o sistema de arrendamento por 99 anos, em 1978, e aboliu a Lei de Controle de Influxo em meados dos anos oitenta (Departamento de Assuntos Agrários, 1997). Porém, isso não afetou os direitos de propriedade nas áreas rurais onde o status quo permaneceu. Não há dúvida, portanto, da necessidade de redistribuir recursos e riquezas.
A expropriação de terras da população negra do país deveu-se à necessidade de reduzir a competição com os agricultores brancos e criar uma reserva de mão-de-obra barata para trabalhar nas fazendas, minas e, mais tarde, na indústria. O padrão de posse e uso de terras estruturou os mecanismos sociais de controle sobre os trabalhadores negros e adequou o excedente populacional às necessidades da economia capitalista. Assim, a extrema desigualdade de acesso à terra foi, e continua sendo, um componente central da economia política da África do Sul. Deve ser enfatizado que qualquer reforma agrária pós-apartheid depende da extensão e caráter da reconstrução econômica do país.


2. PERFIL SÓCIO-ECONÔMICO

As históricas expropriação e segregação na África do Sul contribuíram para a séria negligência à dignidade e aos direitos humanos e para as acentuadas desigualdades no país, além de terem levado a uma posterior diferenciação das classes sociais.

População
A população sul-africana, em 1995, era estimada entre 41,9 milhões e 44,7 milhões de habitantes . Calcula-se um crescimento de cerca de 2,32%, no período de 1990 a 1995 (Instituto Sul-Africano de Relações Raciais, 1996). Contudo, cálculos preliminares da Central de Estatísticas e Serviços indicaram um total populacional de cerca de 38 milhões para 1996, alegando que as estimativas anteriores estavam exageradas. O Centro de Estudos Populacionais da Universidade de Pretória informou que a população do país deverá crescer para 57.5 milhões e 70.08 milhões em 2010 e 2025, respectivamente (Instituto Sul-Africano de Relações Raciais, 1996). As estimativas também mostram que cerca de 54% de todos os sul-africanos residem em Kwazulu-Natal, Gateng e Cabo Leste. Enquanto Kwazulu-Natal possui 21,1% da população total, apenas 1,8% desta vive no Cabo Norte.
Os aumentos populacionais implicam em uma pressão na terra disponível. A densidade populacional não só praticamente dobrou entre 1970 e 1995, passando de 19 para 34 hab/km2, como apresentou significativas variações entre as províncias. Estimativas da Central de Estatísticas e Serviços indicam que, em 1995, as províncias de Cabo Leste, Mpumalanga, Província do Norte, Kwazulu-Natal e Gauteng tinham uma densidade populacional superior à média nacional. Enquanto a densidade populacional em Kwazulu-Natal (94,5 hab/km2) era quase três vezes superior à média nacional, a de Gauteng (374,7 hab/km2) era quase onze vezes maior. A província de Cabo Norte apresentava a menor densidade populacional: 2 hab/km2. Isso se deve ao fato de Cabo Norte possuir cerca de 30% da terra total da África do Sul (a maior em área) e apenas 1,8% da população.
Dos quase 42 milhões de habitantes, em 1995, mais de 31 milhões eram negros (Central de Estatísticas e Serviços, 1995), representando cerca de 76% da população. Sul-africanos brancos constituíam apenas 13% da população. Aproximadamente 57% de todos os africanos negros viviam em Kwazulu-Natal, Cabo Leste e Província do Norte. Kwazulu-Natal contava com quase 23% da população negra e Gauteng com 41% da população branca.
A distribuição populacional por raça também difere entre as províncias. Em 1995, 97% dos habitantes da Província do Norte eram negras. À exceção do Cabo Oeste, onde os brancos representavam 24% da população, os negros predominavam em todas as demais províncias.
O Centro para o Desenvolvimento Empresarial estimou que 48% da população vivia em áreas rurais, em 1995. Contudo, as estimativas preliminares de 1996 da Central de Estatísticas e Serviços indicaram que moravam no campo apenas 44,6% dos sul-africanos. Esses dados mostram um declínio em relação a 1993 e 1994, quando a população rural representava 51,7% do total a cada ano . De acordo com projeções do Centro para o Desenvolvimento Empresarial, em 2011, a percentagem dos habitantes da zona rural e pequenas cidades deverá cair para 46,6%, enquanto a população urbana e metropolitana irá aumentar para 53,4% (Instituto Sul-Africano de Relações Raciais, 1996).
Conforme dados do Banco de Desenvolvimento Sul-Africano, em 1995, Kwazulu-Natal tinha a maior população rural, 5,6 milhões de pessoas, seguida de Cabo Leste com 4,9 milhões e Província do Norte com 4,8 milhões. Em Gauteng havia 7,3 milhões de habitantes na região metropolitana. Cerca de 83,6% das pessoas na Província do Norte moravam em áreas rurais . Noroeste, Cabo Leste, Kwazulu-Natal e Mpumalanga possuíam 60% ou mais de sua população vivendo no campo. Em contraste, apenas 3,1% da população do Gauteng era considerada rural. A maioria das pessoas do Cabo Leste também residia em áreas metropolitanas (83,5%). Não haviam áreas metropolitanas no Estado Livre, Noroeste, Cabo Norte e Província do Norte (Instituto Sul-Africano de Relações Raciais, 1996).
As estimativas para 1994 da Central de Estatísticas e Serviços indicavam que as mulheres constituíam 50,5% da população sul-africana. Em Cabo Leste, Província do Norte e Kwazulu-Natal mais da metade da população era do sexo feminino, respectivamente 54,1%, 53,8% e 52,1%. Nas demais províncias - Gauteng, Estado Livre, Mpumalanga, Noroeste, Cabo Norte e Cabo Oeste - havia predominância do sexo masculino.

Indicadores Sociais
Segundo relatório do Banco Mundial, a África do Sul detém um dos piores indicadores sociais entre países em desenvolvimento com renda-média comparável. Aproximadamente 95% dos pobres sul-africanos são negros (Unidade de Pesquisa Sul- Africana sobre Trabalho e Desenvolvimento, 1995). Em 1995, enquanto a taxa de desemprego entre os negros era de 37%, a dos brancos era de 5,5% (Central de Estatísticas e Serviços, 1996). A população negra tem a pior taxa de desemprego na África do Sul. A taxa de desemprego apresenta variações entre as províncias: Cabo Leste e a Província do Norte 41%; Kwazulu-Natal e Mpumalanga 33%; Cabo Norte 30%; Cabo Oeste 8% (Departamento de Assuntos Agrários, 1997).

A pobreza também está ligada às áreas rurais, nelas encontram-se cerca de 75% dos miseráveis do país. A maioria dos pobres concentra-se nas antigas terras natais. Aproximadamente 63% destes residem no Cabo Leste, Kwazulu-Natal e Província do Norte (Unidade de Pesquisa Sul- Africana sobre Trabalho e Desenvolvimento, 1995).
A pobreza tem ainda forte relação com a condição de gênero. Nos lares administrados por mulheres, o percentual é 50% maior do que naqueles cujos chefes são homens. Além disso, enquanto a taxa de desemprego entre os homens representa 25%, entre as mulheres chega a 35% (Unidade de Pesquisa Sul-Africana sobre Trabalho e Desenvolvimento, 1995).
Há grande disparidade na distribuição de renda entre brancos e negros. A renda mensal média total por domicílio varia de 281 rands/mês entre os negros a 5.055 rands/mês entre os brancos (Unidade de Pesquisa Sul-Africana sobre Trabalho e Desenvolvimento, 1995). Em 1993, a renda per capita dos sul africanos negros e brancos variava entre 2.717 rands e 32.076 rands , respectivamente (Instituto Sul-Africano de Relações Raciais, 1996). A renda também varia entre as províncias.
A desigualdade de renda na África do Sul torna-se ainda mais impactante se for analisado o coeficiente de Gini. O coeficiente de 0.61 é um dos maiores entre os países de renda média (Unidade de Pesquisa Sul-Africana sobre Trabalho e Desenvolvimento, 1995). Outro indicador de desigualdade é o consumo por domicílios. Os 40% dos domicílios mais pobres, correspondendo a 53% da população, representam menos de 10% do consumo; já os 10% mais ricos, correspondendo a entre 5 e 8% da população, representam 40% do consumo (Unidade de Pesquisa Sul- Africana sobre Trabalho e Desenvolvimento, 1995).
As desapropriações históricas e o perfil sócio-econômico apresentado indicam sérias desigualdades em termos de renda e padrão de vida na África do Sul. Os mais vulneráveis são as populações rurais e as mulheres. A terra constitui o principal insumo no sistema agrário; não se pode começar a produzir sem ela. A construção de moradias também requer o acesso à terra. A agricultura continua a ser a fonte de renda básica para comunidades rurais em todo o mundo. A transformação das economias agrárias para melhorar os padrões de vida tem forte relação com a reforma agrária. A redistribuição de terras é um componente importantíssimo da reforma agrária e, conseqüentemente, da redistribuição da riqueza no campo. Na África do Sul, a agricultura atualmente detém uma pequena parcela da renda total da população rural. Contudo, a renda agrícola é maior para os que têm terra do que para o restante da população rural (Centro de Política da Terra e Agrícola, 1997). Redistribuir renda e melhorar os padrões de vida das áreas rurais, portanto, requer acesso à terra.
As desigualdades na zona rural têm causado o êxodo do campo para as periferias das cidades, com graves implicações sócio-econômicas. A reforma agrária é essencial para melhorar a distribuição de renda na área rural e corrigir as enormes desigualdades que têm prevalecido por tantos anos. A reforma agrária é também imprescindível como forma de assegurar crescimento econômico da zona rural e prevenir a crescente instabilidade social e política no país.


3. AS RAÍZES NEGOCIADAS DA REFORMA AGRÁRIA

Em meados de 1993, o Banco Mundial, provavelmente a instituição mais dedicada à proteger os direitos da propriedade privada, advertiu que se a África do Sul pós-apartheid não adotasse “uma grande reestruturação da economia rural centrada em significativas transferências de terras e pequenas unidades agrícolas de produção”, o país enfrentaria o risco de violência rural e, possivelmente, de guerra civil. Foi nesse contexto e em meio a crescentes preocupações para inspirar confiança a investidores internacionais em uma economia em rápida globalização, que os deputados constituintes dos vários partidos sul-africanos abordaram a espinhosa questão de como reverter a injusta distribuição dos 122 milhões de hectares de terras do país.
O desafio era tremendo. De um lado, o partido no governo, o Congresso Nacional Africano, precisava executar sua Carta da Liberdade de 1955. Esta prometia mudar o cenário de apartheid que colocara 87% das terras nas mãos de 60 mil fazendeiros brancos e do Estado, enquanto milhões de negros esforçavam-se para sobreviver em condições de superpovoamento nos 13% restantes. De outro, transformar a paisagem rural – e os padrões urbanos de colonização racialmente separados – e, ao mesmo tempo, garantir auto-suficiência alimentar, criar um ambiente favorável a investimentos, promover o crescimento econômico e a reconciliação racial nacional apresentava múltiplos e interligados desafios. Todavia, o balanço de forças no período das negociações assegurou que a Constituição que emergiu dos acordos multipartidários contivesse uma série de compromissos do Estado para com os sem terra. A Constituição Sul-Africana de 1996 incluiu três cláusulas de direitos fundamentais sobre a terra:

• Seção 25 (5): “O Estado deve tomar razoáveis medidas legislativas e de outras naturezas, dentro de seus recursos disponíveis, a fim de estimular condições que permitam aos cidadãos ter acesso à terra em uma base eqüitativa”;
• Seção 25 (6): “Uma pessoa ou comunidade cuja posse da terra esteja legalmente ameaçada como resultado de leis ou práticas racialmente discriminatórias passadas está nomeada, na extensão fornecida por um Ato do Parlamento, à posse legalmente assegurada ou à reparação comparável”; e
• Seção 25 (7): “Uma pessoa ou comunidade expropriada de suas posses após 19 de junho de 1913 como resultado de leis ou práticas racialmente discriminatórias passadas está nomeada, na extensão fornecida por um Ato do Parlamento, à restituição daquela propriedade ou à reparação equivalente.”
Enquanto a aplicabilidade da Seção 25 (5) sobre a redistribuição de terras poderia ser questionada com base na determinação de “recursos disponíveis”, as Seções 25 (6 e 7) garantiam a nomeação dos beneficiários aos outros dois pilares do programa governamental de reforma agrária, nominalmente a restituição de terras e a posse legal da terra.
Nos primeiros cinco anos da democracia sul-africana (1994-1999), o novo governo elaborou leis e políticas, incluindo o Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (1994) e o Papel Branco sobre Política de Terras Sul-Africanas (1997), que fortaleceram seu compromisso de redistribuir 30% das terras agricultáveis e completar o processo judicial de pedidos de restituição de terra. E ainda, de realizar um programa de reforma agrária que contemplaria “as injustiças da desapropriação racial de terras do passado; a necessidade de reduzir a pobreza e contribuir com o crescimento econômico; a segurança de posse da terra para todos; um sistema de gerenciamento agrário apoiado em padrões sustentáveis de uso da terra e sua rápida liberação para o desenvolvimento”.
Ao mesmo tempo em que saudava essas importantes iniciativas, o Comitê Nacional de Terras e outros setores progressistas advertiram que compromissos subjacentes com a política do Banco Mundial, através do mercado de terras e da “compra e venda voluntária”, tornariam a reforma agrária extremamente custosa para o Estado e falhariam em identificar as ainda pouco articuladas demandas da população rural. Os governos colonial e do apartheid haviam jogado um papel central na criação do padrão existente de propriedade privada branca e de exclusão dos negros. O governo pós-apartheid precisaria intervir efetivamente para mudar tal situação.


4. A REFORMA AGRÁRIA DE MERCADO

O governo pós-apartheid considerou a reforma agrária como uma iniciativa chave para corrigir a desigualdade social. A redistribuição de terras vem sendo caracterizada como uma política de combate à pobreza rural (Zimmerman, 2000). Orientado pelo Banco Mundial, o Departamento de Assuntos Agrários do novo governo tem planejado e legislado, e iniciou a implementação de um complexo pacote de medidas para a reforma agrária. Basicamente, sua política de terras tem três componentes.
A Restituição de Terras destina-se a restaurar a propriedade ou fornecer compensação àqueles que foram expropriados sem adequada indenização pelas práticas racialmente discriminatórias, após 1913 (Departamento de Assuntos Agrários, 1997). A estrutura institucional para implementar o programa inclui Comissões de Restituição nas províncias e Cortes de Reivindicação de Terras que atuam como árbitros finais.
A Redistribuição de Terras objetiva garantir aos pobres e desalojados o acesso à terra com fins produtivos e residenciais (Departamento de Assuntos Agrários, 1997). Também se destina a lidar com as injustiças passadas de expropriação de terras, assegurar distribuição eqüitativa da posse da terra, reduzir a pobreza e contribuir para o crescimento econômico. O programa torna possível aos pobres e prejudicados comprar terras com a ajuda da Concessão para Aquisição de Terras e Assentamento.
O governo sul-africano adotou o modelo de redistribuição de terras orientada ao mercado. Tal abordagem utiliza as forças de mercado para redistribuir terras e se baseia largamente nos princípios de compra e venda voluntária. Há, contudo, algum apoio estatal. O governo se compromete a disponibilizar Concessões para Aquisição de Terras, apoia e financia os processos de planejamento necessários, assiste produtores individuais ou comunidades na compra de terras. O modelo orientado ao mercado tem como pressuposto a “eficiência”. A racionalidade do mercado de terras visa a eficiência do setor agrícola, a fim de assegurar ou até mesmo aumentar os níveis de produção atuais do país e a auto-suficiência alimentar, bem como a manutenção ou melhoria da confiança dos investidores.
Geralmente os critérios utilizados para avaliar a eficácia das políticas e decisões relativas à alocação de recursos privilegiam os aspectos econômicos em detrimento das considerações de eqüidade. A terra pode ser redistribuída tanto com objetivos de eficiência como de eqüidade. Estes dois termos economicamente opostos são, com freqüência, confundidos em diversos documentos. Eficiência e equidade não podem sempre ser alcançados ao mesmo tempo em qualquer redistribuição.
A Legalização de Terras visa fornecer segurança a todos os sul-africanos quanto às diversas formas de posse da terra existentes no âmbito local (Departamento de Assuntos Agrários, 1997). Essa iniciativa inclui medidas para fornecer reconhecimento legal e formalizar direitos às terras comunais em áreas rurais; um programa recentemente implantado para fortalecer os direitos de arrendamento nas fazendas majoritariamente brancas.


5. SETE ANOS DE CRISE E FRACASSO

Até o final de 2001, menos de 2% das terras haviam sido transferidas para a população negra, através do programa de reforma agrária. Leis há muito esperadas para melhorar a segurança de posse de terras dos moradores do antigo Bantustão não tiveram maior eficácia. Das 68.878 petições recebidas para restituição de terras, apenas 12.678 foram julgadas, beneficiando menos de 40.000 domicílios predominantemente urbanos, dos quais cerca de 40% receberam compensação monetária em vez da restauração de terras. Apesar da compensação monetária ser uma forma de reparação, ela não se caracteriza como reforma agrária pois não envolve a transferência de direitos sobre a terra. A predominância de restituições urbanas no julgamento significa que o programa tem feito pouco, até o presente momento, para transformar as relações de propriedade rurais e que a maioria das petições rurais aguarda encaminhamento.
A redistribuição de terras transferiu menos de meio milhão (480.400) de hectares a 45.454 famílias, até março de 1999, ficando bem aquém da meta estimada de 25,5 milhões de hectares de terras agrícolas do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento. A redistribuição foi paralisada pouco depois das eleições de 1999, seguindo-se um longo período marcado por uma total ausência de consultas públicas. Quando finalmente o Programa de Redistribuição de Terras para o Desenvolvimento Agrícola foi lançado, em agosto de 2001, ele tinha como público-alvo os “fazendeiros de tempo integral” e exigia uma contribuição mínima dos beneficiários de 5.000 rands (US$500). O Comitê Nacional de Terras e outras organizações rurais argumentaram que essa exigência excluiu a maioria dos pobres rurais, sinalizando uma reversão nos compromissos do governo.
A lentidão da reforma agrária deve continuar, caso persista a tendência orçamentária dominante: apenas 0,33% são destinados ao Departamento de Assuntos Agrários. Analistas prevêem que nos padrões atuais se levará 150 anos para completar o processo de restituição e 125 anos para a redistribuição das terras agrícolas. Apesar dessas projeções confirmarem claramente o argumento de que reformas agrárias de mercado são extremamente caras para o Estado, a persistente falha do Departamento em gastar até mesmo sua receita orçamentária o coloca em desrespeito constitucional com relação à Seção 25 (5) que requer a efetiva redistribuição dentro dos “recursos disponíveis”.


6. ALÉM DOS DIREITOS: POR QUÊ REFORMA AGRÁRIA?

Apesar da Constituição da África do Sul incluir os direitos fundamentais para acesso à terra, o Estado tem mostrado falta de vontade política em priorizar a reforma agrária como parte de sua estratégia macro-econômica. Isso sugere a necessidade de ultrapassar o discurso dos direitos e demonstrar a importância sócio-econômica de uma abrangente redistribuição de terras e do desenvolvimento rural para o crescimento do país e a redução da pobreza.
O governo sul-africano se comprometeu com uma política macroeconômica conservadora, detalhada em 1996 no documento Estratégia de Crescimento, Emprego e Distribuição, que visa “aliviar” a pobreza a longo prazo, através da expansão industrial, das exportações e dos investimentos estrangeiros diretos. Está implícita nos programas de desenvolvimento a crença de que a modernização traz a urbanização e que os recursos estatais deveriam, portanto, se concentrar no atendimento das demandas surgidas dessa tendência industrial-urbano.
Tal estratégia desconsidera o perfil demográfico da África do Sul, ainda significativamente rural (45%) e as fortes relações campo-cidade entre as famílias. Com mais de 70% dos pobres da nação concentrados nas áreas rurais – muitos dos quais mulheres, crianças e anciãos – este modelo de crescimento poderá exacerbar as desigualdades. Um processo de urbanização nascido do desespero dos pobres do campo irá favorecer a pressão aos já limitados recursos dos Conselhos Metropolitanos.
A opção estratégica do governo também parece ignorar amplas análises econômicas, inclusive do Banco Mundial e de agências bilaterais de desenvolvimento, as quais sugerem que nem sempre a expansão industrial-urbana resulta no alívio da pobreza. Em circunstâncias de severa desigualdade social, este modelo tende a aumentar a distância entre ricos e pobres, simultaneamente diminuindo o crescimento global do país. Pelo contrário, o caminho seguido por alguns países em desenvolvimento mostra que a expansão da agricultura, particularmente após uma redistribuição das terras, possibilita maior crescimento da economia como um todo e redução da desigualdade e da pobreza. Uma renda agrícola mais eqüitativa, combinada com políticas adequadas de desenvolvimento, pode levar à formação de um vigoroso setor rural não-agrícola que estabeleça as bases para um futuro crescimento da indústria.
A desigual distribuição de renda rural na África do Sul é uma conseqüência direta dos padrões de posse da terra. Cerca de 60.000 grandes fazendeiros, predominantemente brancos, dominam o setor agrícola. Como resultado, o acesso aos recursos naturais da nação é negado a mais de 13 milhões de pessoas vivendo em áreas marginais e a cerca de 7 milhões de trabalhadores e colonos dessas fazendas. Esse desequilíbrio na estrutura fundiária se reflete nas disparidades de renda entre os dois grupos e impede, via de regra, o aumento da renda das famílias mais pobres, efetivamente retardando o crescimento do setor rural não-agrícola e a redução da pobreza.
Uma razão para o vínculo entre igualdade na distribuição de terras e maiores índices de crescimento econômico é a relativa eficiência da produção por um grande número de pequenos agricultores em oposição a um pequeno número de grandes produtores; uma relação inversa entre tamanho da fazenda e produtividade. Reduzir a concentração fundiária, portanto, constitui uma estratégia mais eficaz para combater a pobreza do que confiar apenas no crescimento agrícola. A “desracialização” da agricultura comercial, mediante a redistribuição de terras para produtores negros emergentes, conforme propõe o Programa de Redistribuição de Terras para o Desenvolvimento Agrícola, apesar de ser um importante componente da transformação no meio rural, não conseguirá estimular um crescimento econômico sustentável ou uma redução substancial da pobreza.


7. A NECESSIDADE DE UMA REFORMA AGRÁRIA POPULAR

Esses argumentos sócio-econômicos, combinados com os imperativos políticos que inspiraram as primeiras disposições legais sobre os direitos à terra, apontam claramente o caminho a seguir: uma estratégia de crescimento baseada em uma transformação econômica da zona rural, começando com uma ampla reforma agrária, definida através da participação e consulta popular.
O atual enfoque político de redistribuição de terras limita o desenvolvimento de diversas maneiras: concentra recursos nas mãos de um pequeno número de produtores comerciais negros, pouco propensos a gastar a renda disponível na economia rural; confina a maioria pobre à dependência de salários nas fazendas e de relações sociais paternalistas; restringe o impacto transformador da reforma agrária a uma elite; atrasa o potencial efeito da redistribuição, pois para comprar as terras os pobres devem assumir riscos econômicos e diversificar suas fontes de sustento. Em contraste, uma política de reforma agrária genuinamente participativa e popular elevaria a renda dos pobres, cuja propensão a consumir bens e serviços rurais é alta, ao mesmo tempo em que transformaria as relações sociais rurais e aumentaria as expectativas dos trabalhadores do campo de se engajar em meios de sobrevivência sustentáveis.
A participação popular, especialmente de mulheres e jovens, no desenvolvimento deve ser um ato transformador. Participação combinada com educação transforma a consciência e leva a um processo de auto-afirmação, permitindo às pessoas oprimidas assumir o controle de suas vidas. Tal participação deve, contudo, incluir a conquista de poder em termos de acesso e controle sobre os recursos necessários para serem donas de suas vidas.
A terra é um meio primário de subsistência e geração de renda em economias rurais. O acesso à terra permite às famílias rurais usar sua força-de-trabalho produtivamente, além de fornecer uma fonte suplementar de sustento aos trabalhadores rurais e pobres urbanos. Como um recurso hereditário, a terra é a base de riqueza e de sustento para futuras gerações.
O acesso à terra fortalece a participação dos pobres rurais no mercado de trabalho, além de contribuir significativamente para o crescimento do emprego rural, tanto através da agricultura quanto de um setor rural não-agrícola. A reforma agrária também pode promover padrões mais eqüitativos de desenvolvimento que transfiram renda e poder aos pobres.
A redistribuição de terras é inevitavelmente um processo político. A persistência da pobreza, desempenhos econômicos fracos e crescentes desigualdades tornam a reforma agrária necessária e urgente. Ela tem sido bem-sucedida em combater a pobreza e promover o crescimento econômico em muitos países, particularmente os Tigres Asiáticos. Características-chave de políticas efetivas de reforma agrária incluem: explicitar os pobres como público-alvo; limitar o tamanho da propriedade; criar oportunidades de comercialização da produção agrícola; prover serviços de apoio agrícola como parte do desenvolvimento rural; elaborar programas para períodos de uma década ou mais; garantir a participação dos beneficiários nas diversas fases dos programas; propor reformas flexíveis.
Obter tais resultados freqüentemente requer um firme compromisso político dos governos para superar o poder dos latifundiários. A falha em enfrentar tal situação e os atrasos na redistribuição de terras podem enfraquecer o ímpeto político de mudança, alimentando disparidades, tensões e conflitos. Em suma, para o bem da estabilidade política e econômica, é melhor para um país como a África do Sul, com a mais alta disparidade de renda do mundo, enfrentar o risco de uma redistribuição radical de propriedades através da reforma agrária agora, do que enfrentar a instabilidade de longo prazo que emana do atraso em resolver a questão agrária.
Quase nove anos se passaram desde que o nascimento da democracia sul-africana assinalou o fim do apartheid; mas, a ordem econômica neoliberal mantém as relações econômicas desiguais do passado. O Estado sul-africano se comprometeu tanto com a reforma agrária quanto com uma política macroeconômica que contradiz este compromisso. No entanto, o direito fundamental à terra está cristalizado em três cláusulas da Constituição. Estes são ainda fortalecidos pelo preceito de que “o Estado deve respeitar, proteger, promover e cumprir a Carta de Direitos”, incluindo a reforma agrária. Um outro preceito constitucional garante “o direito a uma ação administrativa que seja legal, razoável e processualmente justa” e requer a adoção da lei para promover uma administração eficiente. Isso implica tanto que a população rural receba uma parte dos recursos nacionais quanto que o Estado cumpra suas obrigações para com os sem terra de uma maneira justa e eficiente.
O Estado ainda não cumpriu essa ou qualquer de suas obrigações para com a população sem terra, e essa falha resultou em um acirramento da crise agrária criada pelo colonialismo e pelo apartheid. As escolhas do novo governo, em particular a opção por mecanismos de mercado para a redistribuição de terras, enfraquecem a possibilidade do programa de reforma agrária efetuar transformações nas relações agrárias. Essa atitude poderá perpetuar as relações coloniais, que ainda hoje são uma evidente realidade.
O principal objetivo da reforma agrária deve ser a transformação justa e igualitária do acesso à terra na África do Sul. Esse objetivo tem várias dimensões: corrigir a grande desigualdade na posse da terra; prover atividades produtivas sustentáveis que contribuam para o desenvolvimento de economias rurais dinâmicas; dispensar atenção especial às necessidades dos grupos marginalizados, particularmente às mulheres, de maneira a superar discriminações passadas e presentes; assegurar a participação ativa das próprias populações rurais na formulação e implementação das políticas agrárias.





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*Wellington D. Thwala

Artigo de: O BANCO MUNDIAL E A TERRA: ofensiva e resistência na América Latina, África e Ásia. Organização: Mônica Dias Martins. Sao Paulo, VIRAMUNDO, 2004.

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