terça-feira, 27 de julho de 2010

Marx, filósofo: materialista, hélas! (Marcel Conche)


Publicado originalmente no Le Nouvel Observateur – Hors-Série, edição outubro/novembro de 2003

Há alguns anos, em “Viver e Filosofar” (“Vivre et Philosopher”, PUF, 1992), respondi às questões de Lucille Laveggi. Uma delas era esta: “O que hoje em dia você preserva do marxismo?”. A resposta foi esta: “Entendendo por marxismo unicamente o conjunto das idéias de Karl Marx, preservo delas alguma coisa? Parece-me que sim, mas num domínio, o da economia política, que eu ao mesmo tempo abandono como dele. Não tenho nada a dizer nesse domínio, o da economia política, mas a repartição desigual e injusta dos bens materiais é um fato que é preciso explicar, e ele o explicou. Isso quer dizer que sou marxista? Não, não mais do que sou newtoniano por admitir a lei universal da gravidade. 'Eu não sou marxista', diria o próprio Marx, querendo com isso dizer que ele não tinha a mais para se dizer marxista do que o tinha Newton para se dizer newtoniano” (p. 151). É que se trata de ciência, que é impessoal: é o espaço que é euclidiano, não o geômetra.

Deixando de lado a análise da exploração capitalista, que hoje em dia teria somente de ser atualizada – mas seria necessário para tanto um novo Marx – e, portanto, deixando de lado o Marx sábio, eu me volto ao Marx filósofo. Mas ele é realmente um filósofo? “Os filósofos dedicaram-se somente a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é transformá-lo”, diz a tese XI das “Teses sobre Feuerbach”. Que seja preciso transformar o mundo, a injustiça e a desigualdade que nele reinam, tudo bem. Mas desde quando isso é o papel do filósofo? A filosofia se define como busca da verdade – não dessa ou daquela, mas da realidade em seu conjunto: o que, dessas verdades, é o Todo da realidade? É nesse sentido que o filósofo tem a paixão da verdade. E é essa a paixão de Marx? De modo algum – pois ele não pode esquecer os homens. A paixão de Marx é a paixão moral. Observem o que Hans Jonas escreveu: “É impossível imaginar Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo sem um grau supremo de paixão – a paixão do bem que era objeto de suas visões: eles eram naturezas morais, voltadas a um fim trans-pessoal” (“O Princípio Responsabilidade”), Cerf, 1992, p. 162). Isso vale do mesmo modo para Marx. Pacifista, se eu mesmo sou uma “natureza moral” o sou antes no sentido kantiano. O pacifista “tem as mãos puras, mas não tem mãos”, dizia Péguy. Falso dilema, pois a escolha é: ter as mãos puras ou sangrentas. Eu recuso a violência, mesmo visando ao bem. Para falar como Sartre, os capitalistas são “sujos”. Que seja! Mas os filhos dos capitalistas são inocentes.

Em vista do bem é preciso “revolucionar o mundo existente.” Para tanto, é preciso primeiro conhecer esse mundo. Daí vem a ciência do “Capital” - ciência comparável, diz Marx, não à física, mas à biologia. Contudo, o método são poderia ser experimental, a la Claude Bernard. É necessário um método que permita pensar um mundo, quer dizer, uma totalidade. É exatamente isso o que o método dialético de Hegel permite. É suficiente despojá-lo de sua carapaça mística, de distinguir nele seu fundo racional. Althusser erra ao querer caracterizar a especificidade da dialética com a ajuda de conceitos emprestados à psicanálise, onde eles designam mecanismos de elaboração do sonho. Mas ele tem razão quando diz que a dialética com que Marx opera “não retém essencialmente quaisquer dos conceitos hegelianos, nem a negatividade, nem a negação, nem a cisão, nem a negação da negação, nem a alienação, nem a superação” (“Pour Marx”, Maspero, 1966, p.223, nota 52). Decerto a contradição é “a fonte de toda dialética” (“O Capital”, Editions Sociales, T. III, p. 37, nota 2); mas por contradição aqui é preciso entender simplesmente a unidade dos contrários e, no “Capital” Marx pensa em termos de unidade de contrários: não em termos hegelianos, mas heraclitianos. Marx nos libertou de Hegel: sem ele, Nietzsche, Bergson teriam sido possíveis?

O que significa passar de Hegel a Heráclito, do idealismo especulativo ao naturalismo? Significa cessar de usar a dialética para escamotear o tempo. Porque o tempo não é superável: não se o escamoteia. O movimento do pensamento não deve ser absolutizado, como em Hegel, onde ele se torna “o demiurgo da realidade”: ele não é, em sua realidade, senão a “reflexão do movimento real”. Por movimento real é preciso entender: movimento que implica o tempo – um tempo histórico. Em Hegel, o movimento real não ocorre na Enciclopédia, mas com a “História Universal”. Assim, o movimento real não é essencial à dialética. É somente na história universal que a dialética se entronca com o movimento real. Mas, não sendo a história universal senão um momento, é superada. E nisso reside a diferença radical com Marx: em Hegel, a História é justificada e superada; em Marx, não há superação da História. Isso quer dizer que não há “um sentido na história” já encerrado na Idéia eterna.

Em Hegel, o movimento é superado, pois a Causa do movimento é, como em Aristóteles, a Idéia eterna. Em Marx, não há outras causas que não as contradições inerentes às formas existentes e o movimento não é superado. Como o movimento está ligado à contradição, isso quer dizer que esta não é superável. Todas as contradições particulares são superáveis, mas a contradição como tal não o é. Como em Heráclito, onde o devir não é superável, sempre houve e haverá movimento, e nada mais: aparecimento e desaparecimento perpétuos das formas. Só resta à dialética as coisas finitas: só há finitos – e essa é a essência do materialismo, segundo Hegel.

A dialética significa, em Marx, a auto-supressão daquilo que é. Daí que não há nada de absoluto, nada que seja imune à instabilidade e que não venha a desaparecer. Em particular, o modo de produção capitalista não poderia ser considerado, a exemplo de Ricardo, como um absoluto. A lei da queda tendencial da taxa de lucro o mostra, criando seu próprio limite. Essa limitação testemunha “o caráter limitado e puramente histórico, transitório, do sistema de produção capitalista” (“O Capital”, Editions Sociales, T. VI, p.255). O modo de produção capitalista suprime a si mesmo, cria ele mesmo as condições de um modo de produção “superior” (p. 271). A substituição de um certo modo de produção por um outro, esse é o sentido aproximado da história que vivemos. E não há outro sentido senão o aproximado. A história não é finalista, ela não tem um sentido geral definido anteriormente, pois dedução alguma pode substituir a história real. A dialética vai do abstrato ao concreto, mas o concreto é “o verdadeiro ponto de partida”: ela portanto não teria nada a ver com o concreto que será mas ainda não o é. Ela nos dá a inteligência da história em sua necessidade, mas [a necessidade] da história real, efetivada, não da história que ainda não é real. Ela não permite absolutamente a antecipação. Antecipar seria ainda um modo de escamotear o tempo. Ora, a dialética só tem sentido como reflexão do movimento real, o qual supõe a absoluta realidade do tempo.

Não há disso tudo nada que não me pareça justo. Seria o caso de me chamar materialista? Não me sinto inclinado a tanto. Naturalista, sim; materialista, não. Pois eu filosofo a partir do que se mostra, do que se oferece a mim. Ora, o que se oferece a mim é a Natureza, não a matéria. A Natureza é um dado, não um conceito: a matéria é um conceito, não um dado. A Natureza está aí tanto como um Todo infinito. Isso é claro para aqueles que, a exemplo de Pascal ou de Spinoza, sabem chegar, aquém das evidências comuns, a uma evidência primeira, mais imediata. E o naturalismo espontâneo se confirma pela reflexão. Nele não pode haver senão finitos (seres finitos). O finito pressupõe o infinito... Mas eu não posso me engajar aqui na querela do infinito atual.

O que me deixa reservado e distante do nível materialista é ainda isto. O materialismo marxista é uma filosofia reativa e uma filosofia de combate. Por isso mesmo, resta numa dependência daquilo a que se opõe. Marx filósofo gasta muita energia criticando os outros – Hegel, Feuerbach, Bruno Bauer, Max Stirner, etc. Por que ele não se dedica às coisas mesmas, em vez de deixá-las nos livros? É isso o que ele faz na Economia, onde se trata, é verdade, de ciência, não de interpretação. Por sua dependência do seu passado e de seu inimigo, o idealismo, o materialismo de Marx é uma filosofia que olha para trás. Qual a filosofia para o amanhã? Porque a Natureza é unicamente o que se oferece a todos os homens, seria uma filosofia da Natureza. Marx a tornou possível ao nos libertar de Hegel (para quem a filosofia “da Natureza” só existe no título).

Marcel Conche é professor emérito da Sorbonne.

Tradução: Katarina Peixoto

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