terça-feira, 27 de julho de 2010

Jacobinos Negros


Quem olha hoje para o Haiti, miserável, degradado, dificilmente poderá pensar que o país foi o cenário da ''única revolta de escravos bem-sucedida da História''. No momento da Revolução Francesa, em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de Santo Domingo representava dois terços do comércio exterior da Franca e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. Sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.
Dois anos após a Revolução Francesa, com seus reflexos em Santo Domingo, os escravos se revoltaram. Numa luta que se estendeu por 12 anos, eles derrotaram os brancos locais e os soldados da monarquia francesa, debelando também uma invasão espanhola, uma tentativa de invasão britânica com cerca de 60 mil homens e uma expedição francesa de tamanho similar comandada pelo cunhado de Napoleão. A derrota dessa expedição resultou no estabelecimento do Estado negro do Haiti, que completou, dia 1º de janeiro deste ano, dois séculos.

A grande liderança desse movimento foi Toussaint L'Ouverture. C.L. R. James, ensaísta nascido na Jamaica, que viveu na Inglaterra e nos Estados Unidos, do começo do século até sua morte, em 1989, autor do principal estudo sobre a revolução haitiana, Os jacobinos negros (Boitempo Editorial), diz que ''entre 1789 e 1815, com a única exceção do próprio Bonaparte, nenhuma outra figura isoladamente foi, no cenário da História, tão bem-dotada quanto esse negro, que havia sido escravo até os 45 anos de idade''. Mas, como diz James, ''não foi Toussaint que fez a revolução, foi a revolução que fez Toussaint''.

Foi naquela ilha que os colonizadores europeus pisaram pela primeira vez na América. Assim que Cristóvão Colombo desembarcou na ilha de Santo Domingo, buscando ouro, os nativos indicaram-lhe o Haiti, uma ilha do tamanho da Irlanda. (O nome Haiti vem do vocábulo de origem caribenha Ahti, que significa ''montanha''.) Quando um dos navios de Colombo naufragou, os índios ajudaram a recuperar tudo e nada foi perdido. Os espanhóis, considerados o povo mais avançado da Europa naquela época, anexaram a ilha, introduziram o cristianismo, o trabalho forçado nas minas, o assassinato, o estupro, os cães de guarda, doenças desconhecidas e a fome, forjada pela destruição dos cultivos para deixar os rebeldes sem alimentos. A população nativa ficou reduzida, de cerca de meio milhão ou talvez até 1 milhão, a 60 mil, em 15 anos.

Foi diante desse quadro de dizimação dos povos indígenas que foram importados os negros da África para serem escravos no empreendimento colonial europeu. Uniam-se os dois maiores massacres que a humanidade já conheceu - o massacre dos povos indígenas e a escravidão negra -, na chegada do capitalismo às Américas, revelando as promessas que o continente poderia esperar da Europa ''civilizada''.

A revolução haitiana foi o maior movimento negro de rebeldia contra a exploração e a dominação colonial das Américas. Mesmo com o assassinato de Toussaint L'Ouverture pelos franceses - que haviam substituído os decadentes espanhóis como colonizadores da ilha -, a revolução triunfou e fez realidade, contra a França, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A abolição da escravidão, não contemplada pelos revolucionários de 1789, foi conquistada pelos ''jacobinos negros'' do Haiti.

Sua derrota e o massacre posteriores deram lugar ao quadro de miséria e abandono em que voltou a viver o Haiti e que persiste - é o país mais pobre das Américas. Tivessem triunfado plenamente os ideais de Toussaint L'Ouverture, outro seria o destino do Haiti. Mas sua gesta confirma a capacidade dos negros de afirmar sua cidadania e ser dono dos seus próprios destinos.


Emir Sader

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