quarta-feira, 1 de maio de 2013

As vítimas algozes


Pretendo trazer um conjunto de reflexões a partir da campanha pela redução da maioridade penal. Neste segundo texto, procuro analisar como as ideias racistas sobreviveram no imaginário social para criminalizar a identidade e justificar a repressão.
 Nilton Luz
A tranquilidade com que se fala em “bandido” e “criminoso” no discurso dos defensores da redução da maioridade penal pressupõe que existe uma compreensão consolidada dos conceitos. Mais do que isso, pressupõe que “bandido” seja uma identidade, tal como “brasileiro”, “branco” ou “heterossexual”. Na verdade, toda essa tranquilidade se deve não a uma identidade autônoma que responda a esse nome, mas à associação arquetípica a outra identidade – a negra. Não é preciso explicar quem é o bandido porque esse personagem já está bem caracterizado na formação histórica da sociedade brasileira.
Quando o racismo criou a identidade negra, tudo o que existia eram pessoas de pele preta recém-saídas da escravidão, “invadindo” as terras ociosas que se tornariam as favelas. Bem dizia carta de um abolicionista a um jornal da época: “[...] Sempre pensei que essa lei devia ter dado aos pretos uma liberdade com restricções; devia libertando-os, impor-lhes a obrigatoriedade do trabalho”[1].
As políticas criminalizadoras vieram ao encontro das preocupações do autor da carta. A cor da pele, que antes fora associada à animalização para justificar a situação de escravidão, também agregaria uma tendência à “vadiagem”, à “preguiça” e à “criminalidade” para justificar a repressão a toda e qualquer pessoa negra que não tivesse emprego e residência fixa. Nina Rodrigues foi o principal “cientista” defensor dessas “leis naturais” no Brasil. Ao invés de garantir condições para uma vida digna para a massa de ex-escravizados, como as teses liberais fingiam pretender, o Estado criou mecanismos de reescravização informal. Isto é, os negros eram “livres” para continuar trabalhando em condições similares às anteriores à escravidão, ou seriam reprimidos violentamente. Além da dicotomia trabalho/vadiagem, criminalizava-se o negro através dos elementos da identidade, como o samba, o candomblé e a capoeira. Também se criminalizou a cor da pele, como no modelo americano e sulafricano, embora não tenha sido essa a estratégia principal.
Há uma armadilha nesse mecanismo de produção da identidade, por exigir que o sujeito a “vista” como se fosse… a sua própria pele. Ao reproduzi-la, no entanto, ele pode modificá-la. Quando os sujeitos criados pelo racismo começaram a compreender a identidade coletivamente, nasceu o movimento negro. Reivindicando o direito de autoidentificar-se, os negros disputam a noção de identidade, ressignificam a ideia de negro, denunciam o racismo que media as relações raciais. Mais ainda: forçam a identidade branca a sair da zona de conforto.
Desde a primeira denúncia de racismo, a hegemonia branca se sente acuada.  A cada alteração na ordem racista, manejar o mecanismo de produção e reprodução da identidade torna-se mais perigoso. O movimento negro organiza-se, denuncia o mito da democracia racial, aprova as cotas raciais. O Estado brasileiro admite-se racista, cria estruturas de combate ao racismo, implementa políticas de reparação. A saída que o racismo encontrou foi subjetivar-se.
Como isso ocorre? Essa subjetivação não implica desassociar o racismo em si da cor da pele, apenas o seu discurso. Principalmente em virtude das novas leis anti-racistas, não é mais comum a manifestação de ideais racistas direta e abertamente (como ocorre com o machismo e a homofobia, por exemplo), mas elas continuam a se propagar subjetivamente. Profissionais negros perdem vagas de emprego por ausência de “perfil” para o cargo. Para se referir a aspectos da identidade racial, usa-se uma referência substitutiva da representação racial, como tipo de cabelo ou modo de se vestir. No caso da criminalização negra, um substitutivo comum é “bandido”. A estratégia persiste, abandonados os aspectos objetivos de Nina Rodrigues, como a formação do crânio do homem negro, para emergir elementos subjetivos, com as gírias típicas das comunidades negras[2]. O arquétipo idealizado desse bandido coincide perfeitamente com o estereótipo de um jovem negro.
Para saber quem é o bandido, basta ler qualquer veículo da mídia[3]. Bandido é o adolescente que matou o jovem João Victor e impulsionou a campanha pela redução da maioridade penal, mas não os que mataram a garotinha de três anos pilotando um jet ski. Bandido é o “traficante morto em confronto com a polícia” que aparece no noticiário, mas não o nazista que ataca idosos, negros, LGBT e pessoas em situação de rua. Bandido é o ladrão de supermercado, mas não latifundiário que mata militantes do MST. Bandida é a esposa do traficante, mas não o agressor enquadrado na Lei Maria da Penha. Com todo o aparato ideológico à sua disposição, com destaque para a mídia, as ideologias racistas “vilanizam” os tais “bandidos”, em contraste com os “homens bons”, que seriam as “vítimas” da violência escabrosa.
Na crônica da vida real retradada na mídia, o arquétipo do bandido é sempre negro. A vítima é sempre branca. Caso a vítima seja negra e o agente criminoso seja branco, o termo “bandido” deverá ser substituído por outra palavra, provavelmente “acusado”, e a vítima ainda será imputada de alguma responsabilidade no crime, como no caso de Thor Batista. É como no poema de Jorge de Lima, “Essa Negra Fulô”: em caso do negro ser a vítima, ele é o algoz[4].
Parte da comunidade negra é impelida a ver-se entre os “homens bons”, mesmo que não caibam em sua representação. Para isso, contribui a velha ideologia racista de que “negro bom” é negro honesto, trabalhador, pacato, estudante[5]. É a atualização da oposição entre “vadio” e “trabalhador” do pós-escravidão. Essa ideologia sustenta que a pobreza não “explica” a “escolha” pelo crime, mas uma falha de “caráter”. Os negros são interpelados a provar que são “do batente”, ou então serão “da folia”[6]. Diferença que vale pouco quando a polícia invade a comunidade, aplicando a repressão à raça, independente da idade e do comportamento[7]. Afinal, diria Nina Rodrigues, o caráter também é um atributo da raça.
Por isso os defensores da redução da maioridade penal sempre se colocam no lugar da vítima. Por isso afirmam: “quero ver o que fariam se acontecesse com vocês”, ou ainda “está com pena? Leve para casa”. O próprio apelo à emoção sugere um distanciamento do objeto ao qual a campanha se refere, o tal bandido. É o retorno à lei do Talião, mas aplicada pelo Estado. Não é apenas uma indignação que pede justiça, parece mais uma revolta que exige vingança. Pouco adianta tentar argumentar com a maioria dos apoiadores: eles vão continuar usando os mesmos argumentos capciosos, mesmo que escancaradamente falsos, como o da impunidade. Muitos defendem a redução para 10, 8 anos, aparentemente de forma irrefletida. Outros aconselham as mães a surrar seus filhos para educá-los. Ressuscitam as propostas de esterilização dos pobres. E o apelo ao “quanto pior para eles, melhor” segue ladeira abaixo. Essas pessoas não estão falando dos seus filhos. Eles estão falando das crianças negras, pobres, moradoras das periferias, que vêem nas páginas policiais ou pelo vidro do carro. É o racismo que justifica a raivosidade da campanha.
Nas palavras usadas para se referir aos bandidos, a lembrabça dos termos associados aos negros: “raça”, “marginais”, “bárbaros”, “animais”. Todas esses termos foram colhidos em apenas três “opiniões” entre os primeiros comentários da melhor síntese em defesa do ECA e da maioridade penal até agora escrita[8] (o que não estará sendo dito em fóruns favoráveis?). Opiniões que criticam a ineficiência de políticas de educação e cultura, pois “PARA ESSA GENTE NÃO ADIANTA, ESSA RAÇA NASCE COM A MALDADE NO SANGUE”. Acham “hipocrisia” e “pena” defender os “marginais”. Dizem que se trata de “justiça”, já que os “bárbaros só entendem a linguagem da ameaça, como os animais selvagens não domesticáveis”.
Mesmo que a redução da maioridade penal não seja aprovada, essa ideologia terá conquistado seu objetivo: legitimar o que o movimento negro chama de política de extermínio da juventude negra. Denominada de segurança pública e sob a justificativa de combater o tráfico de drogas, aplica-se uma repressão tão violenta que adota pena de morte sumária, sem direito sequer a um julgamento justo, aplicada pelas forças policiais nos chamados “autos de resistência”[9] e por grupos de extermínio[10]. Se presos, os sobreviventes podem ser expostos aos shows de horrores de programas sensacionalistas[11]. Não precisa dizer que ninguém está preocupado com a idade deles. No quarto país que mais mata crianças e adolescentes do mundo[12] e tem a terceira maior população carcerária[13], a violência é a causa de morte de um quarto dos homens negros[14]. A defesa da redução da maioridade penal por agentes do Estado responsáveis por esse panorama soa como deboche.
Embora considerada ineficiente, a política de repressão é eficaz para seu real objetivo, o extermínio da juventude negra. E diferente do que prega a campanha pela redução da maioridade penal, ela não é “paternalista” e não teme desrespeitar as leis do próprio Estado para fazer vigorar as leis do racismo.


[1] “Estas pretas
Fui um fervoroso adepto da liberdade dos pretos; folguei immensamente com a extincção dessa mancha negra que aviltava o meu amado Brasil; achei e acho ainda boa, justa e santa, a lei de 13 de Maio de 1888.
Entretanto sempre pensei que essa lei devia ter dado aos pretos uma liberdade com restricções; devia libertando-os, impor-lhes a obrigatoriedade do trabalho.
A falta dessa cláusula foi conveniente e prejudicial: trouxe, naquele tedmpo grandes prejuisos à lavoura e, ainda hoje occasiona inconvenientes aos trabalhos domésticos, pois é raro encontrar-se um preto, ou uma preta, que seja assíduo no serviço, ou mesmo que se queira sugeitar (sic) a elle.
As sras. Morenas (chamal-as de pretas é uma grave offensa!) então são intoleráveis!
Querem andar muito bem vestidas, melhor ainda do que as patroas, serem tratadas com muitas attenções, não gostam de serviços grosseiros…
(…)
Ah! Se eu fosse autoridade tiraria as cócegas a essas morenas enthusiasmadas…
Tições!”
[Estas pretas, In: Jornal O Progresso. Anno VIII, nº363, de 04/10/1914, p. 01]
[2] O filme Tropa de Elite, propaganda eficaz de criminalização racista, popularizou muitos desses termos, como “perdeu, playboy”.
[3] No texto anterior, “Por quem te indignas”, discuti o papel da imprensa na propagação do arquétipo racista do criminoso. O texto está neste blogue, no seguinte endereço:http://www.blogs.correionago.com.br/niltonluz/2013/04/15/por-quem-te-indignas/.
[4] O poema “Essa Negra Fulô”, de Jorge de Lima: http://www.luso-poemas.net/modules/news03/article.php?storyid=820
[5] A música “Comportamento Geral”, de Gonzaguinha, descreve bem como os negros podem ganhar o diploma de “homem bom”
Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: “Muito obrigado”
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um Fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado
[6] Veja a letra da música Recenseamento, de Caio Lemos e Humberto Teixeira, clicando aqui: http://www.vagalume.com.br/ademilde-fonseca/recenseamento.html.
[7] Veja um relato recente da ação da polícia na favela Complexo do Alemação, uma favela do Rio, seguindo esse link: http://www.anf.org.br/pacificacao-para-quem-ontem-o-jacarezinho-hoje-o-alemao-e-amanha/.
[8] Você pode acessar o texto Razões para NÃO reduzir a maioridade penal, de Vicinius Bocato, aqui: http://vinibocato.wordpress.com/2013/04/14/especial-razoes-para-nao-reduzir-a-maioridade-penal/
[10] O caso de Goiânia, bastante atual e visível, é bem representativo:http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-04-15/mais-um-morador-de-rua-e-morto-em-goiania
[11]Todas as campanhas pela maioridade penal ocorrem após casos como os de Victor e são impulsionadas pela imprensa. Discuti isso no texto anterior, que já sugeri no item 4, mas também indico o excelente artigo “Quando o crime é cometido por adolescente de classe média alta a indignação da imprensa é seletiva”, de Sylvia Debossan Moretzsohn, no endereço: http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/direitos-humanos/260-noticias-direitos-humanos/13114-quando-o-crime-e-cometido-por-adolescente-de-classe-media-alta-a-indignacao-da-imprensa-e-seletiva.
[12] O dado é do Mapa da Violência, que pode ser acessado aqui:http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_Criancas_e_Adolescentes.pdf
[13] Os dados são do Ministério da Justiça.
[14] Os dados são do Ipea.

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