quinta-feira, 17 de maio de 2012

REFLEXÕES SOBRE OS MOVIMENTOS POPULARES URBANOS



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Escrito por Gisela Mori   
Nos estudos sobre os movimentos populares urbanos, as análises têm oscilado entre as que enfatizam o seu potencial transformador, as que apontam as suas limitações políticas e, nas últimas décadas, as que salientam a sua crise quanto a mobilização e capacidade de intervir nas políticas públicas. Entendemos que os movimentos sociais em geral continuam a ter um papel imprescindível na democratização brasileira, e o movimento popular urbano em particular permanece provocando mudanças nas legislações e políticas urbanas em busca de melhores condições de vida e de acesso a direitos sociais básicos, abrindo espaços para a participação das classes populares na esfera pública.
Os movimentos populares urbanos são entendidos aqui como as ações coletivas organizadas pelas classes populares
1 em prol de melhores condições de vida urbana e de acesso à habitação, ao uso do solo, aos serviços e equipamentos de consumo coletivo, contendo, portanto, como diz Maria da Glória Gohn2, “uma problemática urbana que tem a ver com o uso, a distribuição e apropriação do espaço urbano”. De acordo com Pedro Jacobi 3, esta problemática urbana é a manifestação da crise da cidade capitalista, decorrente da ação contraditória do Estado, que gera um processo de politização do cotidiano.

Como Pedro Jacobi, entendemos que as organizações populares devem ser analisadas não a partir de abordagens sobre o seu potencial transformador ou, ao contrário, suas limitações, mas a partir de seus momentos específicos, da sua dinâmica específica, procurando pensá-los como processos, abertos, sujeitos a contradições internas e pautados por uma composição heterogênea que potencializa a emergência de diferentes formas de ação coletiva e de interação e/ou negação em face do Estado
4.

Neste sentido, os movimentos populares urbanos se traduzem por diferentes formas de organização popular de resistência da população às condições de vida a que está submetida. Assim, consideramos as Ligas de Inquilinos do começo do século passado, os Centros Democráticos Progressistas dos anos 40, as Sociedades Amigos de Bairro no período de 1945 a 1964, os Novos Movimentos Populares Urbanos a partir do final dos anos 70, a União dos Movimentos de Moradia de São Paulo a partir da década de 1980, a Central de Movimentos Populares a partir da década de 90, como movimentos populares urbanos que se diferenciam por práticas sociais e estilos de organização distintos.

Por um lado, Gotz Ottman argumenta que prefere não desprezar o caráter cíclico dos movimentos sociais e que a adoção de um período de análise mais longo permitirá ver que as suas identidades são fluídas e dependentes do contexto, não podendo, portanto, ter sempre a mesma intensidade:

Uma escavação das lutas populares urbanas revela que os movimentos sociais continuam a dar uma contribuição substancial para uma democratização profunda da política brasileira. As organizações de moradores, de fato formam a base do projeto de democracia popular do Brasil ao facilitar estrutural e cognitivamente um grau de participação popular
5.

Por outro lado, Francisco Oliveira
6 (1994: 17) ressalta que não há crise nos movimentos sociais e sim mudança na sua forma de interlocução com o Estado, fruto do processo de democratização, no qual tiveram um papel indispensável. Não considera como crise, mas um ganho do processo de organização, o fato de já não aparecerem na mídia ou no imaginário das pessoas como interlocutores diretos do Estado.

Finalmente, Marlene Ribeiro pondera: com os pés no chão, é preciso ter em conta a historicidade das categorias e dos movimentos para percebê-los na permanência e na continuidade das lutas, e na transitoriedade das formas de protesto e dos conteúdos das reivindicações. O desafio que fica, apontado por diferentes autores e inspirado na contribuição dos clássicos, é criarmos nossos próprios instrumentos de análise para a compreensão da multiplicidade de rostos dos novos sujeitos sociais
7.

Acreditamos que a democracia efetiva só se dará quando todos os indivíduos conquistarem a capacidade de se apropriarem da riqueza socialmente produzida, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social. É assim que Carlos Nelson Coutinho define cidadania. E acrescenta que ela é resultado de uma luta permanente, travada quase sempre pelas “classes subalternas”, pressupondo um processo histórico de longa duração. Desta forma, o que se coloca como tarefa fundamental no que se refere aos direitos civis e políticos e, de modo ainda mais intenso, aos direitos sociais, “não é o simples reconhecimento legal-positivo dos mesmos, mas a luta para torná-los efetivos” 
8.

Assim, a luta por direitos dos movimentos sociais é essencial para o aprofundamento e universalização da cidadania, ou seja, para a crescente democratização das relações sociais. As lutas e ações sociais nos anos 90 e 2000 se configuraram, entre outras tendências, pela participação da população nas estruturas de conselhos e colegiados criados por exigência da Constituição de 1988 ou como fruto de políticas específicas, o crescimento das organizações-não-governamentais e as políticas de parcerias implementadas pelo poder público, principalmente no âmbito do poder local.

Neste sentido, Maria da Glória Gohn
9 avalia que relação do Estado com os movimentos sociais modificou-se à medida que as formas de participação direta foram se institucionalizando. A participação social e os processos de descentralização passaram a se dar nos espaços construídos no interior da sociedade política, cujos interesses e regras têm sido estabelecidos pelos dirigentes dos órgãos públicos.

As ações e as conquistas no âmbito do Estado pelos movimentos populares urbanos indicam que as organizações populares continuam interferindo nas políticas públicas por meio da formulação de propostas de programas e mecanismos de negociação e pressão, sendo elementos cruciais para a democratização das instâncias estatais e de acesso aos direitos urbanos.

Muito embora o governo federal, desde 2003, tenha empreendido grandes esforços para o estabelecimento de políticas públicas, ampliado a oferta de recursos para a área e aumentado os números da produção habitacional, a questão da moradia segue ainda como um dos principais desafios para a inclusão social no país. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, o déficit habitacional urbano brasileiro atingiu 6,6 milhões de residências em 2006, estando fortemente concentrado, 89,7%, nas famílias com faixa de renda até 3 salários mínimos.

Estes dados demonstram que os movimentos populares têm ainda um longo caminho a percorrer para a construção de cidades menos segregadas e mais justas, numa perspectiva de distribuição igualitária dos bens e serviços de consumo coletivo e de melhores condições de vida para os seus cidadãos.
Notas1 A expressão é utilizada aqui no sentido dado por Weffort, ou seja, “(…) todos os setores sociais – urbanos ou rurais, assalariados, semi-assalariados ou não-assalariados – cujos níveis de consumo estão próximos aos mínimos socialmente necessários para a subsistência” (1968: 02). Neste estudo estamos nos referindo especificamente aos setores sociais urbanos.2 GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo: Loyola, 1991.3 JACOBI, Pedro. Movimentos sociais e políticas públicas: demandas por saneamento básico e saúde – São Paulo, 1974-84. 2ª. ed. São Paulo : Cortez, 1993.4 Idem, ibidem5 OTTMANN, Götz. Movimentos sociais urbanos e democracia no Brasil: uma abordagem cognitiva. In: Novos Estudos, n.º 41. São Paulo: CEBRAP, 1995.6 OLIVEIRA, Francisco. Estado, sociedade, movimentos sociais e políticas públicas no limiar do século XXI. Rio de Janeiro: FASE, 1994.7 RIBEIRO, Marlene. O caráter pedagógico dos movimentos sociais. In: Serviço Social & Sociedade, n.º 58. São Paulo: Cortez, 1998.8 COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000.9 Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.

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