PARTIDO, VANGUARDA E CLASSE
O conceito de partido nasce para o movimento operário moderno junto com o
primeiro documento do marxismo militante, o "Manifesto Comunista". Não só que o
título original do programa de Marx e Engels é "Manifesto do Partido Comunista"
como no próprio texto fala-se pela primeira vez na necessidade da "organização
dos proletários como classe e, portanto, como partido político".
Para poder compreender melhor o conceito de partido, "partido político" dos
fundadores do socialismo científico naquele momento, não podemos evitar a citação
de trechos de sua autoria. O faremos sem querer cansar o leitor de saída. No 3º
capitulo do Manifesto intitulado "Proletários e Comunistas", os autores colocam:
"Qual o relacionamento dos comunistas com os proletários em geral? Os
comunistas não são um partido especial em relação aos demais partidos
operários”.
“Eles não tem interesses diferentes do proletariado inteiro”.
“Eles não estabelecem princípios especiais, conforme os quais pretendem
modelar o movimento proletário”.
“Os comunistas se distinguem dos demais partidos proletários unicamente
pelo fato de, por um lado, destacar e por em relevo os interesses comuns
nas diversas lutas nacionais dos proletários, independente de nacionalidade e
por outro lado, sempre defender os interesses do movimento global no
decorrer das diversas fases de desenvolvimento, que a luta entre
proletariado e burguesia percorre”.
“Os comunistas são, pois praticamente a parte mais decidida, que impulsiona
para a frente os partidos operários de todos os países; em relação ao resto
da massa do proletariado eles tem a vantagem teórica, a do conhecimento
das condições, do desenrolar e dos resultados gerais do movimento
proletário".
Queremos ressaltar dois problemas fundamentais, que os conceitos expostos
contêm.
Em primeiro lugar, o conteúdo do "partido". A afirmação que "os comunistas não
são um partido especial em relação aos demais partidos operários" já causou
muitas dores de cabeça aos estudiosos de Marx, aqui e acolá. Não faltou inclusive
quem quisesse provar à base da citação que os comunistas nunca deveriam ter
formado partidos próprios, outros preferem passar por cima ou simplesmente
confessar "nada saber fazer" com essa definição.
A aparente contradição se liquida por si só quando levamos em conta que o
conceito do partido na hora do Manifesto ainda não tinha tomado o conteúdo
organizatório que mais tarde iria tomar, sem falar daquele que hoje está tomando.
O "partido" do Manifesto poderia ser melhor traduzido, hoje, por "movimento" ou
"corrente", independente do seu tamanho. Se não fosse isso, o próprio Manifesto
seria inconseqüente. Por um lado intitula-se "Manifesto do Partido Comunista" e,
por outro, afirma que "os comunistas não são um partido especial...".
Os comunistas em torno de Marx, em 1847, estavam organizados na Liga
Comunista, que tinha o seu programa (o Manifesto) e seus estatutos próprios. Mas
quando Marx fala da necessidade do partido político do proletariado, ele quer dizer
somente que a classe operária tem que se lançar na luta política (como classe para
si), coisa que naquela época não era tão natural, como hoje poderia parecer. Mas,
de que forma concreta essa luta política da classe se daria, Marx não podia prever
ainda. Rejeitava esquemas pré-estabelecidos. Não é gratuitamente que o Manifesto
afirma que os comunistas "não estabelecem princípios especiais, conforme os quais
pretendem modelar o movimento proletário".
A “organização dos proletários como classe e, portanto, como partido político" só
indicava uma necessidade histórica. A maneira como viria a se impor, naquele
momento, ainda não podia ser definida.
Com isso chegamos ao segundo problema que a passagem acima citada contém.
Marx e Engels expõem aqui uma concepção materialista da luta e do próprio
partido. Não só negam que os comunistas estabelecem princípios pré-estabelecidos,
como assinalam (mais adiante) que as definições teóricas não são inventadas e não
passam de expressões de uma luta de classes existente.
Poucos anos depois, Engels define isso de maneira clara, quando diz, na sua
Introdução às "Revelações sobre o processo dos comunistas de Colônia":
"Comunismo não significa mais arquitetar, por meio da imaginação, uma
sociedade ideal, a mais perfeita possível e, sim, conhecimento da natureza,
das condições e dos objetivos gerais, decorrentes da luta travada pelo
proletariado".
Com a derrota da Revolução de 1848, a Liga dos Comunistas entrou em crise e foi
finalmente, dissolvida. Contribuiu para isso o surgimento de uma facção minoritária
no seu meio, liderada por Willich-Schapper, que não se conformava com o
esgotamento da situação revolucionária e que pretendia continuar a luta da mesma
forma, a qualquer preço.
Investindo contra essa facção, Marx a acusava:
"No lugar de uma concepção crítica, a minoria propaga um dogmática, no
lugar de uma materialista, uma idealista. No lugar das condições reais, a mera
vontade torna-se para ela a força motriz da revolução".
Aqui, pela primeira vez, provavelmente, são usados termos como "idealismo" e
"voluntarismo" numa linguagem militante. Que isso não foi a última vez, nós o
sabemos, inclusive por experiência própria. O problema volta em níveis diferentes,
acompanhando praticamente toda a história e o desenvolvimento do partido político
da classe operária.
Demorou para que o partido tomasse forma e conteúdo. A Primeira Internacional
fundada em 1864, isto é, 17 anos depois da publicação do Manifesto Comunista,
ainda não era formada por partidos. Apesar disso, representava um marco decisivo
no caminho da sua formação.
Na Internacional, formada por iniciativa de operários franceses e ingleses,
prevaleciam ainda as formas de sociedade mais ou menos secretas, mais ou menos
conspirativas (proudhonistas, mazzinistas e outras). A Inglaterra estava
representada principalmente por sindicatos legais. Somente os alemães, que
chegaram mais tarde, já dispunham de embriões de partidos (os lassalianos e os
marxistas em torno de Bebel e do velho Liebknecht).
A história da Primeira Internacional hoje é pouco conhecida e difundida, mas ela
conserva a sua importância pelo fato de ter dado lugar à formulação de concepções
marxistas fundamentais para a intervenção política da classe operária. Essas
concepções foram elaboradas nos debates acirrados, que caracterizaram os seus
diversos congressos. Engels diria mais tarde que toda e história da Internacional
tinha sido uma luta entre o marxismo e as seitas. E foi essa luta ideológica a que
preparou a fusão do marxismo com o movimento operário existente. Mas, para que
os resultados surgissem era preciso superar a forma organizatória da Associação
Internacional, que tinha dado o que podia dar. Praticamente acabou depois da
Comuna de Paris encerrando as suas atividades com novos apelos à classe operaria
de formar partidos políticos nos seus respectivos países, para levar a sua luta a um
nível mais alto.
O apelo vingou, a situação estava amadurecendo e o partido político da classe
operária começou a tomar conteúdo e forma organizatória nos principais países
europeus. O processo foi demorado e percorreu toda uma fase histórica. Em 1892
ainda, Engels escrevia a Kautsky:
"Na nossa tática, uma coisa é certa para todos os países e tempos modernos:
temos de levar os operários à formação de um partido próprio, independente e
oposto a todos os partidos burgueses".
Três anos antes, no centenário da queda da Bastilha, tinha sido fundada em Paris,
a Segunda Internacional, composta predominantemente por partidos. Delegados
franceses, ingleses, alemães, belgas, italianos, holandeses, dinamarqueses, suecos,
noruegueses, suíços, húngaros, tchecos, austríacos, poloneses, russos, rumenos,
búlgaros, espanhóis, portugueses, norte-americanos e - para não esquecer a
América Latina - argentinos, estavam presentes ao ato de fundação. Nem todas as
sessões representavam partidos já formados, mas a grande maioria dos membros
da Internacional já o eram e se consideravam como partidos marxistas.
Que partidos eram esses? Qual o seu caráter, sua forma organizatória?
Em primeiro lugar, eram organizações de massas. Eram partidos que visavam
organizar o operariado e, embora no início só atingissem uma fração do
proletariado, a sua tendência era abranger a classe toda. Todo operário que
reconhecesse o programa, os estatutos e que pagasse a sua contribuição, era
aceito como membro do partido.
Isso implicava num predomínio absoluto de operários entre os membros da base,
embora houvesse intelectuais entre os dirigentes. Mas mesmo assim havia
diferenças entre as sessões nacionais. Enquanto na Alemanha, na Inglaterra e nos
países escandinavos o elemento operário tinha peso maior entre as lideranças
(August Bebel era marceneiro), no outro extremo, na Itália, por exemplo, o papel
do advogado, do professor e do médico era muito mais pronunciado em todos os
escalões do partido. Isso dependia não somente das tradições de luta já criadas nos
diversos países, como também do nível de seu sistema escolar e educativo.
Quase todos os partidos da Segunda Internacional se formaram e cresceram em
torno de atividades eleitorais e parlamentares, que eram os instrumentos indicados
para arregimentar a classe. Luta política era luta em torno de leis destinadas a
defender os interesses da classe operária no quadro da sociedade exploradora. Os
partidos operários nascidos numa época não revolucionária, no fundo, só podiam
lutar por reformas. Com o tempo, verificou-se uma polarização no seio desses
partidos. Enquanto nas alas esquerdas, os revolucionários viam na luta pelas
reformas um meio para mobilizar e organizar a classe, criando assim um ponto de
partida mais favorável para o futuro assalto contra a sociedade capitalista, a direita
via nas reformas um fim em si, querendo melhorar a situação do operariado no
quadro da sociedade existente. Geralmente surgia um "centro" entre os dois pólos,
que em última analise não fazia mais do que reforçar a direita. Assim, no partido
alemão, o mais poderoso da internacional, de 1895 em diante, distinguem-se
nitidamente três correntes: a esquerda representada por Rosa Luxemburgo, o
centro por Kautsky e a direita por Ebert.
Sem querer diminuir a importância que essa forma de partido político da classe
operária tinha na sua época - era o instrumento principal para a formação da classe
operaria independente nos países industriais do Ocidente - ela ficou superada e
entrou num beco sem saída, quando as lutas de classes se aguçaram com o salto
qualitativo, que a sociedade capitalista de livre concorrência deu em direção ao
imperialismo. A falência da Segunda Internacional no inicio da Guerra Mundial de
1914, não dizia respeito unicamente ao conteúdo da sua política, mas igualmente à
forma de organização dos seus partidos.
A renovação do conceito de partido veio do oriente da Europa. Foram Plekanov e
Lênin, que defenderam o ”partido de quadros" (Embora Plekanov não tivesse mais
forças para ir até o fim). "Quadro", tirado da terminologia militar francesa, abrange
o conjunto de cada um dos seus componentes, de especialistas militares, do
sargento até o oficial do Estado Maior, destinado a treinar e liderar a massa dos
recrutas, em caso de guerra.
A noção do "partido de quadros" surgiu nas condições peculiares, sob as quais se
desenrolavam as lutas de classes na Rússia tzarista. Em si, significava um
rompimento frontal com a concepção do partido político, que tendia a abranger a
classe operária toda.
O que caracterizava as lutas de classes na Rússia tzarista era que se desenrolavam
sob a repressão mais violenta que então se conhecia na Europa e que qualquer
movimento político tinha de se dar na mais completa clandestinidade.
Em segundo lugar, o proletariado russo, jovem e recém-vindo do campo, ainda não
tinha criado tradições de luta e formas de organização próprias. As lideranças
políticas no seio da classe ainda tinham de ser criadas.
Em terceiro, os revolucionários russos, ao contrário dos europeus, tinham que
contar com a proximidade da revolução. Não se tratava ainda da revolução
socialista, da qual ainda não se cogitava, e sim burguesa, pela abolição do
absolutismo tzarista. A Rússia não tinha passado pelo aburguesamento, em grande
parte evolutivo, da Europa Ocidental, com suas repúblicas parlamentares ou
monarquias constitucionais. O absolutismo tzarista só podia ser derrubado por uma
revolução, isto é, por um movimento insurrecional. O partido, que tinha que liderar
o operariado nessa revolução e garantir que a classe preenchesse o seu papel, de
antemão escolheu formas organizatórias adaptadas à perspectiva insurrecional.
Os social-democratas russos não foram os primeiros na história que tiveram de
lutar em condições de clandestinidade. Os partidos alemão, austríaco e italiano,
conheceram fases de repressão e de proibição das suas atividades no fim do século
passado. Sua situação, entretanto, era diferente da dos russos. No Ocidente os
partidos chegaram a ser proibidos depois de aproximadamente uma década de
atividades legais, durante a qual tinham conseguido penetrar profundamente na
classe operária. Conseguiram, portanto, manter na clandestinidade muitos traços
de um trabalho de massas. As próprias tradições de luta criadas pelo proletariado
alemão na fase legal garantiam as suas atividades na clandestinidade.
O mesmo não se podia dizer da Rússia, onde tudo estava por fazer ainda, pois o
proletariado russo não conhecera uma situação de legalidade, até então.
As diferenças de concepção de Lênin e da facção adversária da social-democracia
russa (que tornar-se-ia conhecida como "menchevique", a minoria) tornaram-se
óbvias no Congresso de fundação, de fato, do POSDR, em 1903 em Londres, na
questão dos Estatutos. Lênin propunha uma formulação pela qual podia ser
membro da nova organização "quem reconhecer o seu programa e apoiar o partido
tanto do ponto de vista material como pela atuação numa de suas organizações."
Martov, o futuro dirigente menchevique, exigia igualmente o reconhecimento do
programa e a contribuição financeira, mas de resto bastava para ser membro que
"dê ajuda pessoal ao partido, de maneira regular e sob a orientação de uma das
suas organizações".
Para o observador desprevenido poderia parecer uma divergência sobre o sexo dos
anjos, mas certamente não para as partes empenhadas. Lênin, que exigia a
integração incondicional no partido, visava uma organização de quadros. Martov, de
seu lado, tinha em mente uma reprodução de partido de massas ocidental, onde os
membros podiam atuar sob o controle de um dos membros do partido.
Lênin já tinha exposto a sua concepção do partido no seu célebre "O que Fazer?". O
livro continua um marco na história do marxismo, mas em cada obra desse gênero
é preciso saber distinguir o que é duradouro e o que é limitado pelo tempo e
espaço.
Condicionada às condições russas de então é a noção do partido composto por
revolucionários profissionais (ou talvez seja melhor dizer "profissionalizados", pois
um militante revolucionário não pode deixar de ser um profissional), que são
sustentados pelo partido para poder se dedicar inteiramente às tarefas políticas.
Esse esquema, a experiência o mostrou, não funciona em países onde a classe
operária já desenvolveu tradições de luta e formas de organização próprias. Nessas
condições, o partido dos revolucionários profissionais fica isolado da classe e
geralmente se condena a uma existência de seita.
Igualmente condicionados às condições russas de então são os plenos poderes
delegados à direção do partido, com seus direitos de nomeação de direções
inferiores, de cooptação e de intervenção em todos os níveis. Ensaiados em outras
condições e em outros países (numa fase em que tudo que era russo era
revolucionário) levaram depressa à degeneração e fracassos.
Abstraindo esses aspectos especificamente russos, o conceito fundamental de Lênin
de um partido que só abrangia a parte mais adiantada da classe operária, receberia
em breve um reforço inesperado pelo desenrolar das lutas de classe no Ocidente. O
próprio Lênin estava longe de supor que seus pontos de vista poderiam encontrar
um campo de ação nos partidos de massas europeu-ocidentaís. Mas na medida em
que se cristalizava o fenômeno do imperialismo, com todas as conseqüências sobre
a estrutura de classe dos países industrializados, tornou-se claro que a velha forma
de organização política deixara de ser funcional. A política imperialista possibilitou a
diferenciação de camadas no seio do proletariado, com a criação do que
freqüentemente foi chamado de "aristocracia operária", a base material do
reformismo. O fenômeno é mencionado pela primeira vez por Engels (ainda numa
fase pré-imperialista), quando fala da situação da classe operária inglesa, que teve
uma situação privilegiada em relação à continental, em virtude da exploração das
colônias pela classe dominante britânica, que por sua vez podia pagar salários mais
altos. Com o florescimento do imperialismo em muitos países, partes do operariado
puderam ser "integradas" na sociedade burguesa, conseguindo um nível de vida
que permitia uma acomodação econômica, social e política. Esse fenômeno já se
tornara claro depois da Primeira Guerra Mundial, por ocasião das tentativas de
revolução socialista no Ocidente.
Nessas condições, também os partidos revolucionários do Ocidente não podiam
mais tender a se expandir pela classe operária inteira, sem trazer para as suas
fileiras toda a gama de ilusões reformistas e democratistas que dominavam vastas
partes do proletariado. As mudanças das condições materiais de luta fizeram com
que os revolucionários do Ocidente chegassem a conclusões semelhantes às de
Lênin, começando a falar do partido como vanguarda da classe.
As conseqüências teóricas e práticas da nova situação criada foram tiradas com a
fundação da Internacional Comunista.
Nas teses sobre as tarefas principais da nova Internacional, redigidas por Lênin,
consta nos parágrafos 3 e 4:
"Significa igualmente querer minimizar o capitalismo e a democracia burguesa
e enganar os operários se supuséssemos, como fizeram os antigos partidos e
dirigentes da Segunda Internacional, que a maioria dos trabalhadores e
explorados seria capaz, sob as condições da escravidão capitalista...
desenvolver uma clara consciência socialista, pontos de vista e caráter
socialistas”.
"Para vencer o capitalismo são necessárias relações mútuas justas entre o
Partido Comunista, o proletariado, a classe revolucionária e a massa, isto é, a
totalidade dos trabalhadores e explorados. Somente se o Partido Comunista
for realmente vanguarda da classe revolucionária, contando com os melhores
representantes dessa classe nas suas fileiras, constituídas por comunistas
conscientes e fiéis à causa, formados e endurecidos em lutas tenazes,
somente se esse partido souber se ligar indissoluvelmente à vida da sua classe
e, por meio desta, com toda a massa de explorados, somente nessas
circunstâncias esse partido estará em condições de liderar o proletariado na
impiedosa luta final contra todo o poder do capitalismo."
O que as teses de Lênin ressaltam aqui, é justamente o aspecto do partido como
vanguarda da classe. Trata-se de uma reformulação do papel e da função do
partido, resultado de experiências surgidas em pólos tão diferentes como na Rússia
tzarista atrasada e na Europa Ocidental industrializada. Neste sentido e somente
neste, pode-se falar de um partido de novo tipo, um "partido leninista". Essa
caracterização, entretanto, não tem nada em comum com as aventuras
voluntaristas que posteriormente se deram na Internacional, quando os partidos de
todo o mundo foram reduzidos a apêndices da facção vitoriosa do partido soviético.
Estudando mais detalhadamente o material desse Segundo Congresso da
Internacional, principalmente as 21 condições de admissão, vemos que não há
princípios organizatórios a serem impostos às sessões nacionais, a não ser a
premissa da existência de um centralismo democrático, que garanta a
capacidade de ação do partido e a submissão de todas as atividades, como a
parlamentar, de imprensa e editorial. à linha política definida nela maioria dos seus
militantes. Os detalhes organizatórios ficam a cargo dos partidos nacionais, que
tem de levar em conta as tradições de luta já criadas pelo seu proletariado.
A posterior "bolchevização" das sessões nacionais da Internacional, iniciada por
Zinoviev e levada a termo por Stalin, forçou os partidos a copiar literalmente o
estatuto soviético (pós-revolucionário), com Comitês Centrais e Birôs Políticos,
desprovendo-os do centralismo democrático, cortando as possibilidades do seu
futuro amadurecimento e desenvolvimento revolucionário. De modo que a
experiência do "partido do novo tipo" foi curta e não chegou a se desdobrar nas
várias condições que as lutas de classes em países diferentes oferecem. O que ficou
para nós é um ponto de partida; a experiência nós próprios temos de colher.
Mesmo entre os revolucionários, o conceito do partido como vanguarda não se
impunha pacificamente. Houve o célebre debate entre Luxemburgo e Lênin, em
1904 e muita gente, até hoje, pretende tomar as polêmicas de então como ponto
de partida para opor uma concepção "luxemburguista" à leninista. A intenção peca
pela origem.
Também Rosa aplicava o termo de "vanguarda", quando falava do partido político
da classe operária, embora lhe desse outro conteúdo do que Lênin. Deve-se esta
atitude, antes de tudo, ao fato dela militar em condições completamente diferentes
que os bolcheviques. Ela estava empenhada em formar um ala esquerda no Partido
Social democrático alemão, mas a situação ai encontrada tornava inviável a criação
de uma facção de esquerda, com disciplina própria, à base de uma organização de
quadros, como se dera na Rússia. Isso teria isolado a esquerda alemã do
proletariado e deixado este a mercê dos direitistas. Este fator objetivo fez com que
Rosa Luxemburgo sustentasse ainda (naquela época) a noção do partido que tendia
a abranger a classe toda. Desse ponto de vista, ela teve razão em muitos detalhes
da sua polêmica com Lênin, inclusive quando atacava o centralismo extremo, que a
realidade das condições russas impunha.
Isso, porém, era seu ponto de vista teórico. Ao mesmo tempo em que militava na
Alemanha, ela era fundadora e continuava a fazer parte da direção do Partido
Polonês, que por sua vez se considerava parte da social-democracia russa, pois a
maioria do território polonês estava anexada ao Império dos Tzares. E na prática, o
Partido Polonês estava sob um centralismo ainda mais rígido do que os
bolcheviques. A oposição no seio do Partido Polonês, que protestava contra esse
estado de coisas (Radek, Djerzinsky, Unschlicht, etc.), chegou a colaborar
diretamente com Lênin, quando não encontrou mais espaço de expressão no
próprio partido.
Rosa conhecia, evidentemente, por experiência própria, as condições sob as quais
se desenrolava a luta de classes sob o tzarismo. O que ela não queria era teorizar e
generalizar as necessidades dessa luta sob essas condições peculiares, que ela via
como exceção passageira de um país atrasado. Teoricamente ela defendia o
conceito de partido da Segunda Internacional, que naquela época ainda não tinha
perdido a sua razão de ser, no Ocidente.
Mais duvidoso era o conceito de Luxemburgo sobre o papel do espontaneísmo,
questão estreitamente ligada ao problema organizatório. Não estamos querendo
endossar aqui as críticas burocráticas posteriores contra Rosa, que negavam
qualquer papel positivo à espontaneidade. Para Lênin, o fator espontâneo nas lutas
de classes e no próprio movimento operário fazia parte de qualquer estratégia
realista. Assim mesmo havia divergências entre os dois revolucionários e ela se
manifestou talvez melhor na questão insurrecional durante a Revolução Russa de
1905. Rosa defendia o ponto de vista que era inútil querer organizar uma
insurreição, pois essa tinha de surgir espontaneamente do seio das massas
proletárias e populares ou, então, não se dava. Lênin, ao contrário, exigia desde o
início que se preparasse e organizasse a insurreição contra o tzarismo. E a única
insurreição armada maior, que se deu durante a Revolução de 1905, a de Moscou,
foi deflagrada e liderada pelos bolcheviques.
Finalmente, as divergências entre Lênin e Luxemburgo nunca chegaram a ter esse
peso que os "luxemburguistas" de hoje pretendem atribuir. Sinal é que no
Congresso de Londres, em 1907, Rosa defendeu abertamente e se solidarizou com
a atuação dos bolcheviques durante a revolução e desse momento em diante, Lênin
e Luxemburgo atuaram em conjunto na ala esquerda da Segunda Internacional.
O que os "luxemburguistas" de hoje pretendem, no fundo, é responsabilizar os
princípios que Lênin defendia na questão organizatória como responsáveis pelas
deformações que a Revolução Russa iria sofrer posteriormente. Trata-se
evidentemente de uma atitude de puro idealismo querer explicar o curso de uma
revolução por padrões organizatórios "errados". Somente as seitas têm a liberdade
de escolher padrões de organização conforme princípios pré-estabelecidos.
Movimentos vivos encontram as formas de organização apropriadas para vencer. O
simples fato de a Revolução Russa ter sido vitoriosa, em 1917, mostra que os
bolcheviques tinham adotado formas de organização apropriadas nas circunstâncias
em que tiveram de atuar.
E aqui vale a pena, talvez, perder algumas palavras, sobre o conceito partidário de
Trotsky e dos trotsquistas de hoje.
O próprio Trotsky pouco ou nada contribuiu para a elaboração de formas
organizatórias revolucionárias. Em 1903, no Congresso de fundação da socialdemocracia
russa limitou-se a apoiar as formulações dos mencheviques e quando
destes se separou, ele e seus adeptos nunca formaram uma organização
propriamente dita e se empenhavam numa estéril tentativa de reunificar numa só
organização bolcheviques e mencheviques. O fato de os bolcheviques
representarem o obstáculo maior a essas tentativas levou Trotsky, em 1912, a
fazer frente única com os mencheviques, fundando o chamado Bloco de Agosto,
frente única dirigida contra Lênin.
A guerra e o desenrolar futuro das lutas de classe fez com que Trotsky rompesse
com os reformistas, se aproximasse dos bolcheviques, integrando o partido de
Lênin e desempenhando o seu conhecido papel de destaque na Revolução e na
guerra civil.
Anos mais tarde, já no exílio na França, Trotsky diz no seu "Diário", que não tinha
tido um papel insubstituível durante os Dias de Outubro. Com a presença de Lênin
a revolução teria se dado de qualquer maneira. Trotsky, porém, não explica porque
chegou a essa conclusão. Parece uma simples reverência perante o gênio de Lênin
e em nenhum lugar da sua vasta obra literária entra no mérito da questão.
Acontece que da genialidade de Lênin faz parte o fato de ter formado e forjado o
partido político do proletariado russo, em condições de liderar o proletariado na
revolução. Sem a existência desse partido e a continuidade da sua ação durante
quinze anos, o próprio Lênin nunca teria "feito" a revolução. Acontece que sem esse
partido não teria havido Lênin tal como a história o conheceu - e é também
problemático se o próprio Trotsky teria tomado o lugar na história que chegou a
ocupar.
Trotsky nunca voltou a esse assunto. Uma avaliação teórica, autocrítica, não
condizia muito com seu temperamento e naquela época ainda não era habito exigir
autocrítica para pecados passados.
De resto, nota-se nas apreciações históricas de Trotsky uma preocupação latente
de relegar a importância e o papel dos "velhos bolcheviques" a um segundo plano.
Durante as lutas de facções, porém, quando se criou um "culto a Lênin" (que teria
revoltado o fundador do Estado Soviético), começaram as polêmicas sobre quem
era o "discípulo mais fiel" do mestre. Trotsky, que nessa disputa bizantina levava
evidente desvantagem, em virtude do seu passado anti-bolchevique, procurou
compensá-la por uma extrema fidelidade aos "princípios" leninistas, também na
questão organizatória. O "partido leninista" tornou-se um dogma, também para o
trotsquismo.
Foi essa a herança que os trotsquistas de todo o mundo retomaram. De saída, os
adeptos de Trotsky no exterior se constituíram como "bolcheviques-lenínistas" e
embora os rótulos tenham mudado com o tempo, sua atitude em relação ao
problema do partido não mudou nem evoluiu. Qualquer trabalho crítico ou criador,
qualquer tentativa de comparar essa herança com as necessidades que tempo e
espaço impunham, esbarrou no medo de serem chamados de "anti-leninistas". Mas,
dogmatismo nunca fez parte do método de Lênin.
Aliás, não queremos ser injustos. Há uma inovação que as organizações
trotsquistas criaram: o direito de formar facções.
No 10º Congresso do Partido Comunista Soviético, que se realizou durante os dias
críticos do levante de Kronstadt, em 1921, Lênin propôs e foi aceita a proibição de
formar facções no seio do Partido. Não é que antes a existência de facções tenha
sido permitida. Não existia nenhum "direito" nesse sentido, mas elas foram
freqüentemente toleradas com fato consumado. Como essa proibição formal de
19Z1, posteriormente foi usada por Stalin contra Trotsky e este chegou a
reivindicar a sua suspensão no decorrer da luta interna no PCUS, o direito de
formar facções entrou nos estatutos das organizações trotsquistas. E lançando um
olhar sobre o movimento trotsquista nos mais diversos países, é preciso constatar
que os seus militantes souberam fazer uso desse direito, não se contentando com
meias medidas.
Um problema fundamental da vanguarda, principalmente quando constituída por
uma organização de quadros, era a sua ligação com o movimento de massas. Na
própria Rússia, os revolucionários chegaram a criar um partido de massas, entre
fevereiro e outubro de 1917, no qual a antiga organização de quadros representava
a espinha dorsal da vanguarda, que por sua vez encontrou o seu campo principal
de atuação nos sovietes.
Nos paises ocidentais, onde os sovietes (como os raete na Alemanha, Áustria e
Hungria) só tiveram uma existência passageira, pesaram os sindicatos como forma
básica de organização operária.
Um caso especial foi o da Inglaterra, onde o poderoso Labour Party (Partido
Trabalhista), fundado por sindicatos e agremiações políticas reformistas, dominava
a classe operária. Quando, depois da Primeira Guerra Mundial, foi fundado um
pequeno Partido Comunista, sua existência se dava praticamente à margem do
movimento operário. Lênin insistiu junto aos camaradas ingleses para ingressar,
como organização, no Partido Trabalhista, cujos estatutos previam a existência de
entidade políticas com certa autonomia. Os comunistas ingleses resistiram por
muito tempo e quando finalmente aceitaram os argumentos de Lênin, já era tarde.
Os dirigentes do Partido Trabalhista, alertados pela discussão travada em público,
fecharam as portas ao PC britânico, que dessa maneira ficou condenado à
impotência política.
O caso inglês era especial, entre outras coisas, em virtude da própria constituição
do Labour Party. Mas independente disso, semelhante atitude não poderia ter sido
tomada pelos comunistas da Alemanha, por exemplo, onde o Partido Socialdemocrata
liderou a contra-revolução de 1918/19, sendo responsável pela morte de
milhares de revolucionários, entre os quais Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Na
Alemanha os comunistas estavam condenados a agüentar à margem do movimento
de massas, até que conseguiram cindir o partido centrista (O Partido Socialdemocrata
Independente) e se constituir, por sua vez, como partido de massa.
Outro caso clássico foi o dos comunistas chineses. Partido pequeno, com poucas
centenas de militantes, em 1923 ingressou, após muita resistência e discussões, no
Kuomintang, o partido da revolução burguesa e anti-imperialista de Sun-Yat-Sen. A
experiência chinesa teve um desfecho trágico, quando cinco anos depois, o
Kuomintang, já sob a liderança de Tchiang-Kai-Chek, fez as pazes com as potências
imperialistas e reprimiu violentamente o movimento operário e comunista. Estes,
em conseqüência, tiveram de retirar seus quadros sobreviventes para o campo,
fora do alcance do terror branco, iniciando assim, a "longa marcha".
Trotsky, naquela época criticava, violentamente a liderança de Stalin e Bukarin,
responsável pelo desastre e, sem dúvida, estava com a razão. Acontece porém, que
Trotsky, desde o início, tinha estado contra o ingresso dos comunistas no
Kuomintang.
A falha dos comunistas chineses (e da direção de Moscou) foi que, por inércia ou
oportunismo, não souberam romper os laços com o Kuomintang na hora certa, não
reconhecendo as mudanças da situação que estavam se esboçando a olho nu. Mas,
se tivessem ficado fora do partido de Sun-Yat-Sen, naqueles anos críticos de
ebulição revolucionária teriam ficado à margem do movimento de massas e é pouco
provável que chegassem a liderar uma revolução vitoriosa.
Bem, o que essas situações tem a ver com os problemas que nós enfrentamos hoje
no Brasil?
Esse esboço certamente não discute e não entra no mérito da nossa situação e dos
problemas que enfrentamos. Visa, sim, embora não esgote as questões aqui
levantadas, destruir mitos enraizados também no nosso meio e fornecer subsídios
para uma discussão que se impõe já.
O nosso problema imediato ainda não é o da constituição do partido revolucionário
da classe operaria brasileira. Não se constitui esse partido sem a participação ativa
da classe. Não se pode afirmar, com a melhor boa vontade, que o nosso
proletariado já esteja disposto a enfrentar esse problema, o qual ainda não
corresponde à sua experiência de luta. As forças políticas existentes no seio e fora
da classe, ainda enfrentam problemas de organização pré-partidários. Mas mesmo
nesta fase, os problemas aqui levantados já estão presentes de forma embrionária.
E quanto mais cedo conseguirmos obter clareza em relação a eles, menos
acidentado será o caminho para o partido revolucionário da classe operária
brasileira, quando amadurecer a situação. O aguçamento das contradições de
classe no país indica que isso não representa mais uma perspectiva para um futuro
remoto.
Eric Sachs
(Publicado inicialmente na Revista "Polêmica" nº 1, julho de 1982. Republicado no
livreto “Marxismo e Luta de Classe”, Editora Praxis, Salvador-Ba, 1987.)
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