terça-feira, 19 de outubro de 2010

RAP E O PROCESSO DE RESISTÊNCIA


Os afro-brasileiros deram uma enorme contribuição para a formação de nossa cultura, mas o etnocentrismo e a violência empreendida cotidianamente aos negros, desde os tempos do escravismo até hoje, conseguiu imputar na nossa sociedade a visão de que a cultura negra é secundária, ou até inexistente, e que os negros são passivos perante essa realidade que os oprime. O racismo continua forte, escondido em grande parte pelo véu mítico da democracia racial brasileira. A saída imposta pelas idéias dominantes é a da absorção de uma pequena camada de negros ao "sonho consumista"; de escravo a marginalizado, direto ao status de consumidor, não se almeja que o negro seja cidadão.
Assim, surgiu-nos a idéia de efetuar uma pesquisa que abordasse aspectos da resistência cultural empreendida pelos afro-brasileiros, para isso escolhemos a música RAP como objeto da nossa análise, música que cada vez mais atrai os jovens periféricos, mas também jovens de classe média. Que fenômeno é este, o RAP, e qual a sua ligação com a cultura africana? O RAP é um instrumento de resistência cultural afro-brasileira ou é mais um modismo como tanto outros que já passaram? Se ele ajuda no processo de resistência cultural do afro-brasileiro, de que modo isso ocorre? São algumas questões que surgiram no decorrer da pesquisa e que nos propomos a responder.
Para responder nossas indagações utilizamo-nos de uma metodologia que uniu pesquisa bibliográfica, pesquisa de campo e o estudo de letras de RAP, explicitando-se a importância dos relatos recolhidos em entrevistas com integrantes do Movimento Hip Hop, que estão destacados em itálico. A bibliografia sobre RAP é parca, assim fomos direto à fonte: as letras de RAP e os rappers. Convivemos com os rappers e assim pudemos captar diversos aspectos importantes para o entendimento do nosso objeto de pesquisa. Para uma compreensão mais global da música RAP, travamos diálogos entre a antropologia e a história, tentando superar os entrepostos epistemológicos que limitam a transdiciplinariedade. A realidade não é estática, logo o método correto de análise do concreto também não deve o ser. A realidade não conhece cortes epistemológicos, eles são criados por nós para ajudar no entendimento do real, assim eles não podem tornar-se entraves ao pesquisador.
Nosso objetivo principal, com esta pesquisa, é entender os processos de opressão e resistência cultural do afro-brasileiro a partir da análise da música RAP. Também é necessário compreender qual a dívida do RAP com a cultura africana e como essa música é apropriada pela lógica de mercado nos dias de hoje.
Para tais objetivos foi necessário munirmo-nos de um referencial teórico que em grande parte foi baseado no conceito de Cultura Popular de Marilena Chauí, que por sua vez é influenciada pelos conceitos de ideologia de Karl Marx e de hegemonia de Antonio Gramsci. Nosso referencial teórico é desenvolvido com mais profundidade em um capítulo específico mais adiante no trabalho.
Avisamos, antes de tudo, que empregaremos palavras em inglês muitas vezes sem destaca-las, pois isso significa que já são usuais na linguagem do rapper brasileiro. Outras não tão absorvidas são destacadas. Outra questão é a da linguagem empregada nos relatos, pois transcrevemos eles de acordo com a linguagem falada, que é diferente da linguagem escrita, mas nem por isso pode ser considerada errada. Para entender o RAP fez-se necessário romper com o "politicamente correto", pois em suas letras as palavras de "baixo calão" são comuns.
Vamos primeiramente entender no que consiste o Hip Hop e o RAP, para depois adentrar na história dessa música, de onde ela veio e como chegou no Brasil. Após este histórico do nosso objeto, vamos descrever e analisar aspectos culturais do rapper, como sua linguagem e sua estética. Chegaremos então ao cerne do nosso trabalho onde é analisada a resistência cultural do RAP; neste capítulo também iremos discutir as heranças do escravismo e as especificidades do racismo brasileiro. Se há resistência, existe algo a ser resistido.
Por fim alertamos que é de essencial importância para a compreensão do nosso objeto de pesquisa que se ouça o CD em anexo, pois uma coisa é ler a letra na folha de papel e outra é ouvir a música RAP, podendo-se assim entrar em contato direto com o objeto pesquisado.
2 O que é Hip Hop?
O Hip Hop é um movimento formado pela união de quatro expressões culturais, usualmente chamadas de elementos, que são: o MC (Mestre de Cerimônia), que é aquele que canta e geralmente escreve as letras do RAP; o DJ (Disc Jóquei), o responsável pela base musical e técnicas sonoras do RAP; o Grafite, que é a arte de pintar muros ( ou qualquer outro espaço possível) com mensagens, nomes e desenhos; o Break completa o Hip Hop sendo a dança característica deste movimento político-cultural. Hoje em dia fala-se no quinto elemento do Hip Hop, conforme a Zulu Nation, uma das maiores organizações de Hip Hop do mundo, este seria a busca do conhecimento. Segundo o fundador da Zulu Nation, o pioneiro Afrika Bambaataa:
Hip Hop means the whole culture of the movement.. when you talk about RAP..RAP is part of the hip hop culture..The emceeing..The djaying is part of the hip hop culture. The dressing the languages are all part of the hip hop culture.The break dancing the b-boys, b-girls ..how you act, walk, look, talk are all part of hip hop culture.. (BAMBAATAA, 1996)
Cada um destes elementos teve uma evolução própria, sendo que o MC e o DJ evoluíram interligados formando a música RAP que é a sigla de Rhythm and Poetry, em português Ritmo e Poesia. O espaço comum na qual nasceram e desenvolveram-se, os guetos negros e latinos norte-americanos, logo fez com que estas expressões culturais de rua formassem um movimento maior, o Hip Hop.
Tudo isso acontecia ali nas ruas dos guetos nova-iorquinos na década de 70. Época tumultuada, mas muito estimulante para a criatividade. Grafiteiros, breakers e rappers não tardaram a realizar as primeiras atividades conjuntas, afinal era nada menos que o natural, eles conviviam no mesmo espaço, eram todos jovens, marginalizados, pobres, tinham os mesmos problemas, desejos e gostos. (Pimentel, p. 1)
O Hip Hop não é um movimento nos moldes clássicos, ele possui alguns setores organizados, mas isso não pode ser interpretado como universal. Para participar do Hip Hop não é necessário assinar ficha de filiação ou algo do gênero, quando você cria músicas, dança break ou grafita, você já é um membro do Hip Hop. Se você participa das festas, freqüenta espaços do movimento ou simplesmente simpatiza com suas idéias e práticas e as defendem, você também está fazendo a sua parte no Hip Hop. O Movimento também não é homogêneo, há pluralidade de idéias, sejam elas, por exemplo, religiosas ou políticas. Mas esta pluralidade conecta-se em diversos pontos, formando uma rede comum onde transitam e chocam-se estas idéias, os conflitos existem como em qualquer outro movimento. Mas o Hip Hop não pode ser visto só como movimento cultural, pois ele almeja transformações, muitas delas nas estruturas do poder, assim é um movimento político também que visa melhorar as condições gerais e especificas das periferias e do afro-brasileiro.
3 Ritmo e Poesia
"Pra mim o rap é como meu sapato. Dia a dia ele tem que tá comigo ali, senão eu fico desprotegido pras coisa que eu encontrá na terra."
Prego do grupo Resistência
O RAP por ser música alcançou uma posição privilegiada na mídia, ofuscando muitas vezes o break e o grafite, que sobrevivem graças aos esforços de seus representantes. Apesar de analisarmos somente a música do Hip Hop, mais especificamente o elemento MC (a poesia do RAP), reconhecemos a extrema importância da dança e da arte plástica no movimento ao contrário de alguns rappers que defendem o chamado "Movimento RAP".
É comum as pessoas confundirem Hip Hop e RAP. Por esse último possuir maior visibilidade, acaba sendo confundido com o movimento na qual esta inserido. A música do Hip Hop é formada por dois elementos distintos mas interligados: DJ e MC.
As técnicas dos famosos "sound systems" da Jamaica animavam as festas de rua de Kingston, elas consistiam em fazer remixagens artesanais dos reggaes, reconstruindo a música. Devemos entender este processo de criação sonora dentro de um contexto extremamente pobre onde o acesso a instrumentos era difícil, demonstrando um elevado nível de criatividade em busca do lazer. Mas além de desenvolverem estas técnicas, os DJs jamaicanos mandavam mensagens políticas e espirituais em cima de suas bases musicais. Um destes jamaicanos, o DJ Kool Herc, quando se mudou para Nova Iorque levou suas técnicas e chegando lá notou que os estilos prediletos nos guetos negros eram o soul e o funk e não o reggae de sua terra. Kool Herc cria a aparelhagem típica do DJ de RAP: dois pratos de discos e um mixer, podendo assim repetir uma pequena parte de uma música formando outra. Outros DJs como Grandmaster Flash foram também importantes para o desenvolvimento das técnicas de DJ do RAP e sua difusão.
A época em que Kool Herc chega nos EUA, o final da década de 1960, foi um período de grandes agitações políticas acompanhadas de inovações culturais. Os Panteras Negras pregavam a autodefesa do povo negro e desenvolviam diversos projetos sociais, desde educação até alimentação nos guetos. Com o assassinato de Martin Luther King, perdem espaços as propostas de luta pacífica (baseadas, em grande parte, em Ghandi) pela emancipação do afro-americano e ganham espaço as idéias de Malcom X e dos Panteras, muito mais agressivas. Os Panteras Negras eram influenciados teoricamente por pensadores e revolucionários como Malcom X, Frantz Fanon, Che Guevara, Mao Tse Tung entre outros. A Guerra do Vietnã gerava protestos que partiam principalmente da juventude, os processos de descolonização ainda em andamento na África ajudavam a desenvolver a consciência crítica na população afro-americana. A sociedade racista estadunidense demonstrava medo pela organização e radicalização dos grupos de ativistas negros, neste momento o COINTELPRO entra em ação atacando fisicamente vários escritórios dos Panteras e num projeto malthusiano dissemina, com a ajuda de traficantes, drogas pesadas (heroína) no gueto, minando as bases do Black Panther Partei (SOARES, 2003). Assim começa o retrocesso da resistência negra que irá reviver com toda força no surgimento do Hip Hop. Mesmo enfraquecidos e destruídos, os Panteras Negras deixaram sua semente na geração posterior, conforme o b.boy Crazy Legs, os irmãos mais novos dos Black Panthers foram os responsáveis pela criação do Hip Hop, e eles aprenderam com os Panteras a importância da organização e da coletividade.
A música funk, representada por nomes como James Brown e George Clinton, teve grande influência na base musical do RAP, os primeiros DJs utilizavam-se dos discos dos mestres do funk para fazerem suas bases.
Naturalmente, tudo que os negros passavam era expresso em suas canções. E como o povo preto dos EUA estava cada vez mais consciente socialmente, devido a toda a luta política, cada vez mais cantava idéias de mudança de atitude, valorização da cultura negra, revolta contra os opressores. (Pimentel, p.5)
Mas o funk, um dos galhos da grande árvore da música negra, apesar de sua agressividade sonora e letras de autovalorização negra, acaba por se tornar um produto comercial na indústria fonográfica, perdendo parte de seu potencial, lembrando muito o processo que ocorre com o RAP hoje.
O preconceito quanto ao RAP tem variadas matizes, alguns dizem que o RAP não é música porque não tem instrumentos, outros difamam o RAP por este ser americanizado (isto no Brasil). O primeiro pré-conceito é facilmente derrubado, pois os toca-discos e mixers não fazem a música sozinhos, eles sofrem a intervenção humana sendo verdadeiros instrumentos musicais, um DJ cria batidas e sons, sampleia de discos antigos, usa teclados e outros instrumentos para gerar suas bases. Com o tempo o RAP foi recebendo influências de diversos estilos musicais, desde a música eletrônica do grupo alemão Kraftwerk até o rock pesado, mas continuando sempre em sua raiz de batidas marcadas e baixo de funk. O segundo pré-conceito não se sustenta, pois por trás do RAP há uma rica história que não conhece limites ou linhas imaginárias de países: a da cultura africana e sua resistência através dos tempos de sua sofrida, mas não passiva, história neste continente americano. A partir de agora iremos dissertar sobre a poesia do RAP, representada pelo elemento MC, pois nela esta contida a tradição oral africana que em cada parte das Américas escravistas desenhou um caminho diferenciado.
3.1 As Origens da Poesia do RAP
Muitos pensadores e historiadores eurocêntricos (Hegel, Coupland, Gaxotte, Charles-André Julien, etc…) negaram que a África fosse uma parte histórica do mundo, sustentando teorias racistas e, escamoteando os grandes desenvolvimentos produzidos neste continente-berço da humanidade. A historiografia tradicional, limitada pelos documentos escritos (fontes da "verdade histórica"), afirmou que a maioria das sociedades africanas não possuía história porque não tinham escrita. Se a África não teve um Homero para escrever epopéias, como disse Gaxotte, por outro lado possuiu um Bala Faseké, o grandioso griot malinquês de Sundjata, que como tantos outros griots passou a vida transmitindo a "herança do ouvido" (KI-ZERBO, 1999, p. 11).
Em muitas destas sociedades a palavra além de mágica (essencial para religiões como as de origem jeje), era um instrumento de conservação da história e das tradições dos seus povos. Os griots além de historiadores e menestréis, eram muitas vezes homens-fronteira, alguns deles eram responsáveis pela memorização de linhagens reais, outros iam de povoado em povoado, de tribo em tribo, contado e cantando histórias tradicionais daquele povo, geralmente acompanhados de instrumentos musicais. Quando um griot chegava era o momento de repassar para todos a "herança do ouvido", metaforicamente o griot era uma verdadeira "biblioteca ambulante". Quando criticam a viabilidade da história das sociedades ágrafas africanas, os ideólogos etnocentristas esquecem que a oralidade tem a equivalente eficácia e é tão subjetiva quanto uma fonte escrita pode o ser, apesar do mito positivista criado por Ranke, que dita que as fontes e os fatos falam por si mesmos, vigorar na historiografia tradicional etnocêntrica. Apesar da subjetividade, o profissional historiador competente, através da comparação de relatos orais com fontes escritas ou arqueológicas, muitas vezes descobre a similaridade entre o oral e as outras fontes. Entrevistamos Len, rapper africano de Guiné-Bissau que mora em Porto Alegre de 1998 e também é MC do grupo Dependentes, ele também ressaltou a questão da oralidade africana:
Esta questão da oralidade é na África toda, meu[…]a educação africana é extremamente oral. Tudo o que os meus avós sabem, aprenderam por meio da oralidade. Então tudo isso é passado pros netos, pros descendentes oralmente, e nós, eu , a minha geração[…]tiveram oportunidade de sair fora, que nem eu, e estudá […] Na minha situação eu não recebi a educação oralmente, mas mesmo assim eu tinha a minha vó, antes de falecer,ela me contava umas coisas, assim, tu viu que tinha a raiz de educar as pessoas oralmente. Isto é fundamental, estudamos isso no colégio, a questão da oralidade que pe bem africana mesmo."
Len do grupo Dependentes
A complexidade e heterogeneidade musical africana fica evidente quando o mesmo Len nos afirma que Guiné-Bissau, um país que não possui mais de 2 milhões de habitantes:
[…]é constituída por trinta e poças etnias e cada etnia tem uma cultura diferente, um dialeto diferente e um estilo de música diferente e dentro de todo o País, todo mundo fala o criolo, que é o dialeto que todo mundo têm que falar, pra se comunicá entre as etnias. E temos o ritmo mais popular que é conhecido como Cumbe.
Len do grupo Dependentes
Ao serem escravizados e mandados nos inumanos tumbeiros para as Américas trabalharem nas plantagens coloniais (GORENDER, 1988, p. 77-95), os africanos trouxeram apenas sua força de trabalho e sua "bagagem" cultural na memória. Na América inglesa os protestantes reprimiram duramente os instrumentos africanos, já na América católica francesa, portuguesa e espanhola, apesar da repressão, os cultos religiosos puderam sobreviver através do sincretismo guardando a riqueza do instrumental africano. Apesar de não poderem tocar seus instrumentos os africanos e afro-descendentes dos EUA continuavam sua tradição musical e oral com as Work-Songs e os Field Hollers que eram cantos de trabalho que ajudavam a amenizar a dor e o sofrimento dos africanos escravizados. Os senhores brancos não se importavam com a cantoria, pois eles achavam que proibir os escravos de cantar poderia prejudicar o trabalho. Em sua tese "Uma Forma de Manifestação e Resistência da Cultura Negra" de pós-graduação do Departamento de Antropologia da PUC-SP, Tella (apud PIMENTEL, p.20) afirma que :
Os negros levados ao sul dos EUA vinham da África Ocidental (do litoral do Senegal, ao norte, até o Golfo da Guiné, no sul), especialmente da região de Daomé, seqüestrados pelos franceses. Para esses africanos, a música não era só arte ou divertimento. Eles não possuíam escrita, então usavam canções e poemas para preservar a história de cada tribo, suas tradições e leis. Um africano cantava trabalhando, estudando, festejando, guerreando, em qualquer ocasião.
No fim do século XVIII, missionários protestantes introduziram a religião branca entre os escravos, que muitas vezes freqüentavam o culto na fazenda. Desse modo os negros puderam libertar sua musicalidade reprimida, louvando um Cristo libertador. Surge assim o Spiritual. Com o Blues, surge uma leitura nova e mais individual, misturando a influência das Work-Songs com os acordes dos hinos religiosos e refletindo sobre as angústias do negro. O termo blue se traduz por um sentimento entre a tristeza e a alegria, é difícil explicar em palavras escritas. Outros estilos musicais foram sendo criados pelos negros recém-libertos norte-americanos, os mais importantes foram o ragtime e o jazz. O primeiro é uma leitura africana do piano europeu e quanto ao segundo, nascido em Nova Orleans, voltamos a afirmar a diferenciação entre a colonização protestante e católica para entende-lo. Na região de Louisiana, inicialmente francesa, a religião africana, principalmente a de origem jeje, pôde sobreviver com toda a sua musicalidade, por causa da repressão mais branda dos católicos. Lá, como aqui no Brasil, os colonizadores não se importavam em transformar a sua senzala num "harém particular", ao contrário da forte segregação protestante. Usando o exemplo da colonização da África do Sul, Magnoli (1998, p.16) discorda desta tese que afirma que o processo de miscigenação deu-se somente nas áreas católicas:
Nas primeiras décadas, a colônia [África do Sul] conheceu um intenso processo de miscigenação entre os imigrantes europeus e os escravos africanos e malasianos. Desse processo surgiram os coloured, mestiços da região do Cabo. A intensidade da miscigenação entre os imigrantes protestantes e os nativos africanos nos primeiros tempos, desmente as teses que enxergam na mestiçagem um fenômeno próprio à colonização latina ou católica. Ao mesmo tempo reforça os estudos que situam a mestiçagem como um fenômeno ligado a uma fase específica e inicial das experiências coloniais, anterior a imigração familiar em massa quando o contingente masculino superava largamente o feminino na população imigrada.
Com o nascimento de mestiços, os créoles, estes acabavam por ter um tratamento melhor, sendo alguns até assumidos por seus pais. Elevados a um grau maior na hierarquia social, estes créoles, puderam estudar os instrumentos europeus, muitas vezes indo à Europa para realizar os estudos. Mas com a mudança das leis e o início da segregação radical, no final do século XIX, os créoles acabaram por voltar a sua condição de negro, não existia mais diferença entre pardo, mulato, marronzinho e negro, somente o cidadão WASP (White Anglo-Saxon Protestant) era considerado branco. Desta aproximação, com os créoles ensinando os negros os instrumentos europeus e a teoria da música européia e estes últimos ensinando para os primeiros os spirituals, blues e canções de trabalho, surge o Jazz, uma música altamente desenvolvida e plena da musicalidade africana, que muitas vezes faz os instrumentos "falar". Ora, fazer os instrumentos "falar", não seria uma herança da oralidade?O Jazz passou por várias fases e obteve vários rótulos como dixieland, swing, bebop, cool, chegando a dominar por muito tempo a indústria fonográfica estadunidense. A história do Jazz, desde sua criação revolucionária, até a comercialização, com revoltas e inovações como o bebop de Charlie Parker e Dizzy Gillispie é riquíssima, e dela podemos tirar vários ensinamentos para entender como a Cultura Popular, apesar de assimilada em grande parte, sobrevive no capitalismo. Após o jazz a musicalidade negra continuou dando seus frutos, o rock-and-roll, o soul e o já citado funk.
A tradição oral africana nos Estados Unidos expressava-se também em espécies de desafios de rimadores, chamados de Dozens, tendo similaridades com o preaching, o signifying, boasting e no toasting, este último de origem jamaicana. Estas poesias improvisadas eram feitas com gírias dos bairros negros, e contavam histórias de malandros, cafetões, jogadores, prostitutas e todo tipo marginalizado pela sociedade. No começo da década de 1970, alguns negros e porto-riquenhos começaram a mandar mensagens poéticas de conscientização política em cima de bases instrumentais. Gil Scott-Heron, lançava versos rebeldes sobre bases influenciadas pelo jazz e soul e os Last Poets faziam a mesma coisa, porém voltando a raiz dos instrumentos de percussão africanos. Juarez Piñero fazia uma poesia extremamente marginal, refletindo sobre a vida dos viciados e o submundo, e declamava seus poemas falados, mas musicais, em bares. A importância destes nomes para o RAP é enorme, pois eles foram uma espécie de conexão entre as tradições orais africanas e a geração que criou o Mcing (antigo nome do RAP).
No Brasil, as tradições orais africanas acabaram por ser denominadas pela região em que foram criadas. Um exemplo, o côco de embolada, típica música pernambucana, tem uma grande semelhança com o RAP de improviso, o chamado freestyle. As próprias técnicas de memorização e rima possuem semelhanças entre o RAP e muitas músicas de repentistas, poetas populares, trovadores de toda espécie. O ritmo produzido pelo pandeiro no côco permite a criação e improvisação, assim como a base criada pelo DJ de RAP. Alguns grupos de RAP brasileiros como Faces do Subúrbio de Recife e Thaide e DJ Hum de São Paulo aproximaram o RAP da embolada, demonstrando a similaridade e a origem africana comum entre os dois estilos.
3.2 Os Primórdios do RAP
Com a gravação de Rapper’s Delight , do grupo Sugarhill Gang, considerado o primeiro RAP gravado, este gênero musical chega às paradas de sucesso. Mas o primeiro grupo de MCs da história foi Kool Herc and the Herculoids , estes seguidos de Grandmaster Flash and the Furious Five, sendo que esses foram os primeiros a abordar um tema de crítica social no RAP em sua música The Message. O estouro do RAP se deve realmente a dois grupos distintos: o Run-DMC e o Beastie Boys, este último formado por brancos, o que ajudou, a levar o RAP às classes médias e altas brancas. Enquanto vai espalhando-se, o RAP vai sendo transformado dando surgimento a vários estilos: o gangsta RAP surge em Los Angeles, marcado pelos versos sobre a vida marginal dos ladrões, traficantes, bandidos e jogadores; também na costa oeste dos EUA surge o RAP chicano, afirmando a identidade cultural latino-americana com sua linguagem spanglish; em Miami surge o Miami Bass, com letras pornográficas e explícitas, sendo um dos estilos de RAP mais criticados por muitos dos próprios rappers. Com a crescente mercantilização do RAP surge uma onda de rebeldia e retorno a música como arte e não como produto, este estilo é o underground, geralmente formado por grupos e rappers com produções independentes que procuram fazer bases bastante diferenciadas e rimas bem trabalhadas. Mas na ampla definição underground cabem todos os rappers que são contra o RAP mercadológico. Assim um rapper pode vir a ser underground ou comercial, segundo a linguagem atual dos participantes da cultura Hip Hop.
Muitos grupos distintos surgiram nos EUA, alguns como NWA e Public Enemy foram divisores entre as chamadas Velha e Nova Escola do RAP. O NWA (Niggaz With Atittude) de Los Angeles trouxe na crueza de suas letras a possibilidade de rimar sobre os problemas cotidianos. Bastante contraditório este grupo em algumas letras exaltava a vida bandida, enquanto em outras mandava mensagens positivas e conscientes como em Express yourself. O Public Enemy, grupo fortemente politizado, tinha integrantes formados em filosofia e se consideravam a "CNN Negra". Suas letras (Fight the Power, White men´s heaven is the black men´s hell, etc..) abordavam temas como o racismo e a opressão, consolidando o estilo consciente de RAP, transformando o microfone numa arma. Há muitos outros grupos e rappers importantes: Wu Tang Clan, Ônix, 2PAC, Ice-T, KRS-One, Delinquent Habits, Queen Latifah, Hieroglyphics, entre dezenas de outros, cada um com o seu estilo e inovações.
É necessário explicitar que o RAP espalhou-se pelo mundo, por países europeus e asiáticos, africanos e latino-americanos, podemos ouvir RAP em alemão, francês, russo, japonês, espanhol, português, mandarim, entre outras muitas línguas do mundo. Onde há periferias, desigualdade e falta de lazer, o RAP e os outros elementos do Hip Hop acham um local em potencial para desenvolver-se.
3.3 O Hip Hop chega ao Brasil
O primeiro elemento do Hip Hop que chegou ao Brasil foi a dança break, por intermédio, em grande parte, de basicamente dois filmes: Beat Street e FlashDance. O primeiro, produzido por Sidney Portier em 1984, mostrava a cultura Hip Hop como um estilo de vida, e possuía participação de dançarinos famosos como os da New York Breakers. O segundo, produto típico da mídia hollywoodiana, em uma de suas cenas, mostra uma batalha de break. Os primeiros dançarinos de break reuniam-se na Estação São Bento de metrô em São Paulo e ali entre palmas ritmadas, batidas em latas e beat box criavam-se os primeiros MCs de RAP que logo criariam um território próprio, a praça Roosevelt, berço da primeira posse brasileira, o Sindicato Negro. As primeiras letras de RAP eram bem mais ingênuas dos que as atuais, predominava o chamado "RAP estorinha", sem muita consciência crítica. Com a crescente organização dos dançarinos de break e rappers, surgem oportunidades de gravar músicas em coletâneas históricas do RAP nacional como:
"Ousadia do RAP", pela Kaskatas, "O Som das Ruas", primeiro LP lançado pela Chic Show, "Situation RAP", pela FAT Records, "Consciência Black" (que lançou os Racionais), da Zimbabwe, em 1988, seguidos pelo famoso "Cultura de Rua", da Eldorado. Muitas dessas gravadoras surgiram das equipes de som que organizavam os bailes black desde a década de 70. (Pimentel, p. 16)
Uma das primeiras letras de RAP que abordavam um tema crítico-social foi Homens da Lei de Thaide e DJ Hum, que falava sobre a violência policial em São Paulo, em Osasco e ABC paulista. Já no final da década de 1980, os rappers começaram a produzir letras conscientes, versando sobre o racismo, a pobreza, as injustiças sociais. Coincidia com este processo a enorme procura dos rappers por leituras que ajudassem no entendimento dos problemas que vivenciavam. O antropólogo Silva em seu artigo "Arte e Educação: A Experiência do Movimento Hip Hop Paulistano", no livro "Rap e Educação, Rap é Educação", organizado por Elaine Andrade (apud PIMENTEL, p. 18) destaca:
Nesse momento os rappers enfatizaram que o ‘autoconhecimento’ é estratégico no sentido de compreender a trajetória da população negra na América e no Brasil. Livros como ‘Negras Raízes’ (Alex Haley), ‘Escrevo o que eu Quero’ (Steve Byko), biografias de Martin Luther King e Malcolm X, a especificidade do racismo brasileiro, especialmente discutida por Joel Rufino e Clóvis Moura, bem como lutas políticas da população negra, passaram a integrar a bibliografia dos rappers."
A influência de grupos norte-americanos como NWA e Public Enemy, filmes de Spike Lee como Faça a Coisa Certa e Malcom X ajudava os rappers brasileiros neste processo também. Isto em São Paulo, Brasília, Recife e Porto Alegre.
Por outro lado, no Rio de Janeiro, berço dos gigantescos bailes blacks de soul na década de 1970, o Miami bass acabou por dominar o RAP carioca, com suas batidas quebradas e versos curtos, usualmente com conotações sexuais. Alguns miamis cariocas possuem letras que refletem sobre a pobreza, enquanto outras exaltam a vida bandida dos soldados e traficantes dos morros e suas respectivas organizações. Erroneamente chamado de funk carioca o Miami bass do Rio de música marginal virou produto da mídia, invadindo as boates da elite carioca. Posteriormente alguns rappers, como MV Bill, desenvolveram também o RAP consciente no Rio de Janeiro.
Por volta de 1995, alguns grupos de RAP destacavam-se no cenário nacional: Racionais MC´s da zona sul de São Paulo, com letras sobre a condição do negro no Brasil e o crime na favela; o MRN (Movimento e Ritmo Negro), também de São Paulo, com versos sobre o cotidiano da vida na periferia, seus problemas, seus personagens e situações; o DMN (Defensores do Movimento Negro), grupo paulista fortemente politizado com letras de autovalorização negra; GOG de Brasília, mostrando que é possível fazer uma grande reflexão sobre a realidade através do RAP; Faces do Subúrbio de Recife, que misturavam RAP com guitarras e embolada, Sistema Negro de Campinas; Potencial 3; e continuando suas carreiras, Thaide e DJ Hum.
É na década de 1990 que o RAP de improviso ou freestyle como a desenvolver com toda força no Brasil com a formação da Academia Brasileira de Rimas. Tivemos a oportunidade acompanhar algumas batalhas de improviso entre MCs, as rimas vão sendo feitas na hora, sobre algum assunto presente no ambiente, ou sobre qualquer coisa, muitas vezes os MCs se trocam xingamentos (geralmente coisas engraçadas) lembrando as já citadas Dozens e outros tipos de desafios de poetas rimadores como o repente nordestino.
Em termos musicais os rappers brasileiros são bastante influenciados por artistas de outros estilos como Jorge Ben, Tim Maia, Gerson King Combo, Marvin Gaye, Curtis Mayfield, James Brown, além da forte influência da "malandragem consciente" do samba de morro de Bezerra da Silva, Dicró, Moreira da Silva, Leci Brandão e Originais do Samba. Com o surgimento de grupos americanos como o Wu Tang Clan, com rimas bem construídas e bases sonoramente revolucionárias, o RAP no Brasil sofre esta influência, surgindo grupos como SNJ ( Somos Nós a Justiça).
No Brasil há várias mulheres MCs de RAP, Dina Dee do grupo Visão de Rua de São Paulo, Negra Lee ex-integrante do extinto RZO ( Rapaziada da Zona Oeste), Nega Gizza do Rio de Janeiro, entre outras que demonstram cada vez mais que o RAP não é só "coisa de homem".
Relembrando dos primórdios do RAP em Porto Alegre, DJ Tinga afirma que em 1982 começou a discotecar alguns RAPs no Canecão de Ouro. Tinga além de ser DJ, é dono da Loja Som na Caixa na Galeria Marechal Floriano, na rua com o mesmo nome no Centro da cidade. Ele vende discos de RAP e black music a quase dez anos, sendo sua loja importante espaço de difusão da música RAP em Porto Alegre. Como em São Paulo, o primeiro elemento do Hip Hop que chegou em Porto Alegre foi o break, e a primeira gangue de b.boys foi a Hackers Crew.
Logo em seguida começô aquela mudança do funk, aquela adaptação mais eletrônica do funk e começô a vir o break. E eu fui um dos primeiros a toca aqui o Kurtis Blow, com um disco chamado América. Mantronix… (???), Run DMC…. eram grupos que faziam uma batida rapidinha… Ice-T… que a gente tocava pra rapaziada dança break. Foi assim que começou. Depois uma parte passô pro charme, uma música um pouco mais lenta, mais vagarosa, até o começo dos anos noventa e ai propriamente dito começô a se inseri a música falada. (DJ Tinga)
O DJ Luka do grupo Dependentes, com 32 anos e há mais de 20 anos envolvido com a black music, também começou gostando de soul e funk, mas logo conheceu o RAP e acabou se tornando integrante do Hip Hop. Em seu relato ele contou-nos que em 1988 começou a discotecar RAP para a equipe de som Jara, que realizava seus bailes no Sindicato dos Metalúrgicos, ou Metal como era conhecido o local.
Eu comecei por influências. Meu tio Fernando, ele curtia na década de 70 muito soul, muito jazz, muito blues e funk, vários tipos de música na linha afro norte-amerciana[…]E eu acabei gostando, fui como um amante, indo, indo, até entrá mesmo no Hip Hop. Assim começou. Ai com seis anos eu já tava gravando minhas fitinha, com doze anos eu já tava indo nas festa, adquirindo meus vinilzinho. Na época não tinha condições pra comprá um toca-disco, a gente tinha uns toca-disco de madera, né, Garrard.
DJ Luka do grupo Dependentes
Com a chegada de discos de grupos como Thaide e Dj Hum e Racionais, o RAP de protesto começa a invadir Porto Alegre, apesar de uma resistência inicial, como afirma Tinga:
Naquele tempo que saiu o primeiro disco dos Racionais, o RAP mais consciente que tinha… um dos primeiros. Acho que foi por isso que eles são considerados os melhores. Um RAP de protesto consciente, onde eles falavam a verdade nua e crua, doa a quem doer. Em fui em São Paulo, comprei alguns discos, aquela época o Naldinho fazia sucesso… o Sampa Crew, eu vendia muito disco deles. Mas quando saiu este disco (Racionais) eu ficava na rua vendendo, ai o pessoal vinha: "-Ahh, eu quero um Sampa Crew" E eu sempre dizia pra eles:-Pô, ouve estes caras aqui meu, estes caras são legal. "-Bah, este eu não quero, fica falando que a gente têm que se conscientizá ,que a gente têm que pensa pra frente, eu quero mais me diverti". Mas era coisa da época.
4 A teia cultural do Rap
Ser rapper, não se resume ao ato de cantar RAP. O rapper desloca-se dentro de uma teia cultural própria que inclui uma série de especificidades culturais dos adeptos dessa música. Em termos de estética e moda, o rapper possui uma imagem geralmente associada aos marginais da sociedade, a visão de um rapper na rua (apesar da moda em andamento) assusta muitas pessoas preconceituosas. As roupas geralmente são grandes: camisas largas e jaquetas, além das clássicas calças enormes com a cueca aparecendo. Isto advém do modo como os presidiários vestem-se, como o tamanho das roupas dos presos é único, essas últimas geralmente ficavam grandes. Ao sair da prisão, o ex-detento utilizava roupas grandes na rua para demonstrar visualmente sua situação marginal além de aumentar seu status nas ruas. Mas por serem folgadas, as roupas foram adotadas por dançarinos de break e também por skatistas, já que elas dão maior liberdade aos movimentos. Os cabelos dos rappers, quando não são raspados, seguem a moda negra de estilos: tranças, dread locks (o cabelo dos rastafaris), black power (cabelo negro comprido e sem aplicação de produtos para alisamento). Há muita influência dos norte-americanos na estética do RAP, bonés de time de basquete, tênis e roupas importadas, mas existem rappers que criticam esta atitude, como o GOG em sua música VAI GOG:
[…]Eu não vejo graça chegado, tudo importado. Meu Brasil é mesmo uma colônia americana, andando pelas ruas não entendo nada, é raro ler um nome em português nas fachadas e o inglês barato chegado, muitas vezes errado, bem lembrado. Um mal que necessita ser curado, continua nas camisetas, nas jaquetas, nas calças. Eu podia citar até mais, mas já basta, é a morte cerebral tomando conta da rapaziada. […]Os caras devem rir e nos chamar até de idiotas pelas costas quando pisam aqui e nos vêem usando suas marcas, não as nossas, pouco conhecem daqui, só Amazônia, Copacabana, o índio sem espaço, a mulata boa de cama. Terra do besteirol, mundo do futebol, e pra jogar nossos falsos argumentos pelos ares, prepare-se, sabia, pra eles a capital do Brasil é Buenos Aires […] Os caras se julgam donos do mundo, será o Brasil mais um território anexado?
Quando falamos com rappers, o que mais chama atenção, além de sua imagem, é a sua linguagem corporal e falada. Um rapper comunica-se com o corpo e com as mãos, o andar do rapper pode ser identificado, geralmente um andar arrastado, malandreado, como se o caminhar também fosse uma dança. Nas capas de discos de RAP vemos muitos gestos como o dos 4 dedos, que significa 4P (Poder Para o Povo Preto). A comunicação dá-se não só pelas palavras, o corpo também fala. A linguagem do rapper é permeada por gírias de diversas procedências, são gírias locais misturadas com outras vindas de fora (principalmente de São Paulo), para um ouvinte que toma seu primeiro contato com o RAP, provavelmente muita coisa ficará sem entendimento, a não ser que este ouvinte seja da periferia, tendo já conhecimento desta linguagem. A maioria dos rappers dizem palavrões em suas letras, pois, para eles, é a linguagem da rua "sem maquiagem". Mas alguns rappers como GOG preferem não utilizar palavrões na sua música, pois isto acaba fazendo com que as vós, os pais distanciem-se do RAP e muitas vezes proíbam os jovens de ouvi-lo. Para maior compreensão das gírias e neologismos do RAP, vide o Glossário do RAP no final desse trabalho.
Os rappers encontram-se no seu espaço próprio, as ruas, pois é delas que emanam os temas abordados no RAP, além de participarem de festas e de organizações como as posses. As festas de RAP são ao mesmo tempo, na visão de seus participantes, divertimento e conscientização, pois reúnem os adeptos que dançam e trocam idéias. Já estivemos em muitas festas e shows de RAP (mais de 100 festas e mais de 20 shows) nestes nove anos de acompanhamento do Hip Hop, e visualizamos algumas diferenças conforme o lugar em que fomos. Vamos citar dois exemplos antagônicos, que ilustram melhor estas contradições. O primeiro exemplo é extinta Big House, que era freqüentada por muitos indivíduos de classe média, mas com a participação de negros periféricos. Era uma casa de RAP em um bairro classe média (Rio Branco quase Petrópolis, depois mudou para a Mostardeiro), que tinha muitos brancos em suas festas (não só rappers, como skatistas e clubbers). O outro exemplo são as festas show em quadras de samba, como a do Bambas da Orgia e Imperadores. Tivemos a oportunidade de ir a dois shows do Racionais MCs, Thaide e Dj Hum, Gog, de fora do Rio Grande do Sul. Entre shows nas quadras de samba e shows em outros lugares, com grupos aqui do Rio Grande do Sul, vivos e ouvimos grupos como Resistência, Manos do RAP, Revolução, URC, Polêmica, L.O.R.D.S ( extinto), Da Guedes (ex-S.ofG.), Dependentes do RAP, Attack Frontal, entre outros. Nestes lugares a maioria esmagadora era negra, no primeiro show dos Racionais que fomos (1997), éramos, sem exagero, uma "manchinha branca em um oceano negro". Apesar de alguns conflitos isolados que presenciamos, nunca fomos incomodados por sermos brancos, ao contrário do que dita a mitificação acerca do RAP. As brigas geralmente já vinham de fora da festa. Em uma ocasião em que dispararam com uma pistola .22 na perna de uma rapaz no salão, Mano Brown, dos Racionais, fez um discurso contra a violência, dizendo que enquanto os periféricos matam-se entre si, a elite dá risada contando as notas de dinheiro. Mas este foi um caso em cem, não podemos nutrir medo por freqüentar lugares marginalizados, pois a humildade e o respeito, geralmente imperam nestes locais. O que queremos dizer com tudo isso é que os rappers falam de coisas que vivenciam, e como diz Mano Brown, "ser rapper não é como jogar Street Fighter" (jogo de luta nos vídeo-games), que quando você quer acabar com a violência desliga a TV e pronto. O rapper não pode desligar-se da sua realidade, ele é parte dela e luta para modifica-la. No último show dos Racionais que fomos (este no Cais do Porto, a beira do Guaíba) vimos uma enorme quantidade de brancos de classe média no show, isto tudo por causa da "moda Racionais". Muitos que vão aos shows do Racionais não são do Hip Hop, vão pelo sucesso estrondoso que este grupo faz. Em outros shows como o do GOG, vimos somente pessoas ligadas ao Hip Hop, e nestes shows nunca vimos uma briga sequer, demonstrando que muitos conflitos são causados por pessoas que se identificam com o Hip Hop, mas não fazem parte dele organicamente. Além de ser um espaço de lazer, nas festas de RAP circulam muitas vezes panfletos de shows e outras festas, zines de Hip Hop entre outros materiais produzidos pelos rappers. Hoje em dia, não há mais em Porto Alegre uma casa especializada em festa de RAP, devido à moda atual, muitas casas de classe média e alta tocam rap (geralmente o mais comercial) demonstrando que não só o periférico é assimilado pela cultura da elite, mas também essa última absorve alguns aspectos da música da periferia. Mano Brown na música Negro-Drama fala sobre esta verdadeira aculturação da elite:
Inacreditável, mas seu filho me imita. No meio de vocês ele é o mais esperto, ginga e fala gíria, gíria não, dialeto. Esse não é mais seu, ó, subiu. Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu. Nós é isso ou aquilo, que, cê não dizia? Seu filho qué ser preto, ahhhhh, que ironia. Cola um pôster do 2Pac ai, que tal, o que cê diz?
Em nossa pesquisa conhecemos um dos territórios mais importantes para o RAP em Porto Alegre, que é a Galeria Marechal Floriano, carinhosamente chamada de Galeria do RAP, lá fizemos duas entrevistas. Nossos diários de campo de 20.04.2004 registram um pouco de nossa impressão do lugar:
Na primeira vista o lugar, não chama muito atenção pelo fato de onde está localizado e também porque é uma sala pequena [a Loja Som na Caixa]. Chegando mais perto notamos a grandeza do lugar, onde existe uma gama cultural enorme no local. É um lugar alternativo para pessoas que realmente gostem da música RAP. (João Batista)
Fomos à Galeria Marechal Floriano na rua com o mesmo nome, no centro da cidade, pois este local é um espaço importante para a cultura afro-brasileira porto-alegrense. Primeiramente sentamos numa mesa do Café Negrão, após observar o lugar, compreendemos a importância do local, pois além de possuir este Café com nome sugestivo, possui uma loja de roupas de hip hop (4P- marca de São Paulo feita por rappers), a famosa Loja Som na Caixa, pioneira e especializada na venda de discos de rap.Além de tudo está ocorrendo no subsolo do local uma mostra de arte egípcia (réplicas), mas o importante é que ao visualizar o local da mesa do Café Negrão, vemos a Loja 4P (Paz e Poder para o Povo Preto), a Som na Caixa e na frente delas uma estátua egípcia, cultura africana. (Walter)
Passando a tarde no local veremos que circulam muitas pessoas ligadas ao RAP e ao Hip Hop nesse espaço da Galeria, no happy hour pessoas de outras tendências culturais também se encontram ali para bater um papo e beber algo após mais um dia cansativo de trabalho.
A rapaziada chama de Galeria do RAP, porque tem uma loja de disco e uma loja de ropa. O pessoal que lança disco, pode ter uma loja de CD, pra vendê seus discos. O pessoal que faz suas festas, tem uma lojinha pra promovê suas festas. O pessoal que lança ropa, pode tê uma loja de ropa como a 4P. O pessoal que não tem um lugar pra se coliga, pra trocá uma idéia, uma informação, tem pelo menos a Galeria do RAP pra trocá uma idéia, tomá um chopinho, tomá um refri, botá suas idéias em prática.
DJ Luka do grupo Dependentes
5 A Resistência através do Microfone
Após compreender o passado do RAP e um pouco de sua teia cultural, passaremos agora a análise dessa música dentro de um contexto de resistência cultural dos afro-brasileiros. Para tal objetivo, é necessário adentrar em assuntos como as heranças do escravismo, como o racismo se configura no Brasil e qual a situação atual do afro-brasileiro. Logo após, iremos ocupar-nos do conteúdo das letras de RAP e de que forma atuam no processo de resistência cultural.
A resistência cultural promovida pelo RAP ocorre em vários níveis diferentes, mas interelacionados, pois ao escrever letras o MC precisa aprender a ler a realidade de forma crítica, e este é um exercício bastante importante para a afirmação do indivíduo como sujeito que intervém na realidade. Ao ler a realidade o rapper dá início a um processo de recuperação de sua práxis, deixando de reproduzir somente, começa a criar. O ato de criar já é libertador, pois demonstra a potencialidade do ser humano, mesmo vivendo em um meio pobre, muitas vezes miserável. Outro aspecto importante relativo ao RAP é a sua organização e solidariedade, atípica em outros estilos musicais. Os rappers aprendem a trabalhar coletivamente, organizam shows, criam posses e outras organizações, fazem palestras sobre diversos assuntos ligados a periferia (racismo, drogas, sexo, crime, polícia) e participam ativamente em espaços políticos .
5.1 RAP e Cultura Popular
Para melhor compreendermos o RAP como resistência cultural, utilizamos o conceito de Cultura Popular proposto por Chauí (p. 28, 1986), pois:
embora de difícil definição, a expressão Cultura Popular tem a vantagem de assimilar aquilo que a ideologia dominante tem por finalidade ocultar, isto é, a existência de divisões sociais, pois referir-se a uma prática cultural como Popular significa admitir a existência de algo não-popular que permite distinguir formas de manifestação cultural numa mesma sociedade."
Para chegar a esta conceituação, Chauí baseou-se nos conceitos de ideologia de Marx e hegemonia de Gramsci, além da utilização do conceito de alienação: ao abordar o primeiro, a autora explicita a visão de que ideologia é um conjunto de representações, valores e ilusões criado pela classe dominante, mas com tendências universalizantes que legitimam e naturalizam a exploração e a dominação; já o conceito de hegemonia, para Chauí(p.21, 1986), "ultrapassa o conceito de ideologia porque envolve todo o processo social vivo". O conceito de hegemonia coloca-nos a cultura como processo social global que forma a visão de mundo de uma determinada sociedade.
Pode-se dizer que, para Gramsci, a hegemonia é a cultura numa sociedade de classes. Hegemonia não é um ‘sistema’: é um complexo de experiências, relações e atividades cujos limites estão fixados e interiorizados, mas por ser mais que ideologia, tem capacidade para controlar e produzir mudanças sociais. (CHAUÍ, p. 21, 1986)
Assim, a hegemonia não produz somente alienação e passividade estaticamente, ela deve ser a todo o momento recriada e reconfigurada ao mesmo tempo em que é resistida e desafiada. Aqui nos cabe apresentar o conceito de contra-hegemonia, que é a oposição e resistência à hegemonia dominante, ou seja, dentro dessa última surgem brechas por onde emerge a cultura popular. Muitas vezes a cultura popular é ignorada, mas em alguns casos, ela é assimilada e transformada até tornar-se de acordo com a hegemonia dominante, perdendo assim seu potencial de resistência. Para nós, o conceito de contra-hegemonia pode ser aplicado ao RAP, já que este ao mesmo tempo em que desafia a hegemonia em muitos aspectos, acaba sendo absorvido por ela em outros. Desse modo, devemos:
[…] aproximarmo-nos da Cultura Popular como expressão dos dominados, buscando as formas pelas quais a cultura dominante é aceita, interiorizada, reproduzida e transformada, tanto quanto as formas pelas quais é recusada, negada e afastada, implícita ou explicitamente, pelos dominados. Procuraremos aborda-la como manifestação diferenciada que se realiza no interior de uma sociedade que é a mesma para todos, mas dotada de sentidos e finalidades diferentes para cada uma das classes sociais. […]não tentaremos abordar a Cultura Popular como uma outra cultura ao lado (ou no fundo) da cultura dominante, mas como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda que para resistir a ela (CHAUÍ, p.21, 1986)
O conceito de alienação (entfremdung), também é trabalhado e relacionado com a ideologia por Chauí (1981, p.66):
No que concerne à ideologia como universalização do particular, através de um corpus de normas e de representações encarregado de fabricar a unidade social pela dissimulação das divisões internas, aqui também a alienação não é apenas um resultado (algo cronologicamente posterior), mas mola propulsora, condição e resultado do processo. E isto não apenas porque seria responsável pela inversão imaginária do real (a ideologia reduzindo-se a um fenômeno de consciência inconsciente), mas porque nela se realiza a tentativa insensata de suprimir imaginariamente a fragmentação e os conflitos.
Mas ao utilizar-mos este conceito e relaciona-lo com a Cultura Popular devemos ter cuidado:
[…]a fim de que não se atribua a uma esfera da sociedade algo que define o próprio todo social. O cuidado não significa, de modo algum, abandonar o conceito em nome da juventude daquele que o empregou no século passado. Ao contrário, trata-se de mantê-lo porque, uma vez compreendida a identidade de sua forma exploradores e explorados, torna-se possível marcar o lugar da diferença e esta concerne ao conteúdo. Se, para a classe dominante, a alienação vivida e exercida é fonte de autoconservação e de legitimação, para os dominados é fonte de paralisia histórica. (CHAUÍ, 1981, p.66)
A música rap, a partir dos conceitos expostos, é uma Cultura Popular contra-hegemônica, que está passível a ser absorvida em alguns aspectos que abordaremos adiante quando tratamos do RAP mercadológico e integrado na mass media.
5.2 A Herança do Escravismo
A sociedade brasileira foi marcada duramente pelo modo de produção dominante por mais de três séculos, ou seja, o escravismo colonial, "modo de produção historicamente novo" (GORENDER, 1988, p. 39-45). Mesmo com o fim de sua base material e sua superestrutura jurídica, as idéias racistas dominantes na formação social escravista brasileira ainda teimam em persistir depois de passado um século de capitalismo. Ainda que oprimidos, superexplorados, violentados e coisificados, os africanos e africanas e seus descendentes resistiram de diversas formas, entre elas cabe explicitar a importância da formação de quilombos, espaços formados por escravos fugidos. Estas mulheres e homens negros criaram uma sociedade nova dentro da sociedade escravista, além de livres serviam de exemplo a outros escravos e simpatizantes da causa abolicionista. Os quilombolas sofreram ataques violentos do estado escravista, mas Quilombos como o de Palmares resistiram bravamente por muito tempo até serem destruídos. Nos quilombos diversas etnias conviviam em paz, algumas até inimigas na África, tornavam-se aliadas contra o escravismo. Os quilombolas criaram um espaço de liberdade, e neste espaço a sua criatividade florescia com um potencial incrível nada comparado aos tempos em que estavam na condição escrava. Além disso, é sabido que alguns quilombos mantinham relações comerciais e políticas com cidades e povoados próximos, demonstrando que o quilombo, longe de ser isolado, buscava conectar-se com a sociedade, pois isso era crucial para sua sobrevivência. Mesmo que a condição escrava não leve a uma consciência de classe-para-si, limitando a organização da luta contra o status quo, os quilombos demonstraram que o africano e o afro-descendente escravizados não foram passivos, desmistificando a visão dominante e afirmando-os como agentes transformadores, mesmo muitas vezes não tendo consciência que estavam construindo sua própria história.
Com o fim da escravidão em 1888, o negro liberto foi largado a sua própria sorte; sem terras e outros meios de produção, desqualificado como força de trabalho e sem acesso aos direitos básicos de uma vida digna, o afro-brasileiro foi colocado a margem da sociedade. A imigração de força de trabalho européia foi a saída encontrada para suprir a produção, em um verdadeiro processo de branqueamento, onde a ideologia racista pseudo-cientifica e típica do final do século XIX afirmou que o Brasil só iria progredir se ficasse mais branco! Segundo Fernandes (1978, p.20) :
A sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de educar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo.
É neste contexto que surge a figura do malandro, que nas primeiras décadas do século XX vai estar ligada ao homem negro urbano (principalmente no Rio). O malandro é a síntese do homem que marginalizado pelo mercado de trabalho vai buscar sua sobrevivência através de jogatina, trambiques e trabalho informal. A capoeira e o samba estão intrinsecamente ligadas ao malandro, um tipo mulherengo e boêmio, mas com um código de ética próprio o que iria originar a "malandragem consciente" representada hoje no samba por Bezerra da Silva. Nesta mesma época as maltas de capoeira aterrorizavam as noites do Rio e Salvador, muitas vezes estes capoeiristas eram contratados por facções políticas que mandavam esses homens acabar com comícios de rivais. A roupa típica do malandro tinha uma influência da capoeira, pois geralmente este usava lenço de seda no pescoço e no braço, tudo isso uma defesa contra as navalhas, que geralmente não cortam a seda por possuir uma lâmina muito fina. Nessa época eram muito utilizados os golpes de capoeira com navalhas entres os dedos dos pés, estilo mortal e violento, hoje em dia não praticado.
Com o Estado Novo, inicia-se um processo de exaltação de símbolos que antes estavam, ligados ao popular e negro, agora se tornam nacionais a partir de seu embranquecimento. A capoeira é "legalizada" por Getúlio Vargas, exaltada como esporte nacional; o samba agora se torna música nacional e as novas condições do capitalismo brasileiro levaram a mudanças na vida do malandro:
Os estudos revelam que essas modificações incorporadoras são determinadas por mudanças na sociedade brasileira no nível econômico (assim, por exemplo, o novo mercado de trabalho impossibilita a permanência do malandro, figura central do samba e do carnaval cariocas, e que se torna um ‘símbolo nacional’, isto é, o famoso ‘jeitinho brasileiro’, a transgressão contínua)[…] (CHAUÍ, 1986, p.92)
Na Ditadura Militar ocorre novamente a exaltação da cultura popular, que transformada, torna-se um instrumento ideológico dos militares no poder. Os maiores exemplos são o futebol, que começa a cumprir um papel de coesão social e glorificação do Estado, e o carnaval, que é domesticado e censurado a partir do financiamento pelo estado e bicheiros, tornando-se ufanista em seus sambas enredo que celebram o regime militar e atraem o turismo. Sobre este processo que vem ocorrendo ao longo do século XX, culminando na Ditadura Militar, Chauí afirma que:
Vários estudiosos(OLIVEN, R. G. Violência e Cultura no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1973.) assinalaram processos de incorporação e de verdadeira domesticação de aspectos da cultura popular brasileira pela classe dominante: no plano da alimentação ( por exemplo, a feijoada, prato da culinária africana, convertido em ‘prato tipicamente nacional’ ); no plano da música ( por exemplo, o samba, ritmo de origem africana e praticado nas favelas do Rio de Janeiro, convertido em "ritmo tipicamente nacional" ); no plano da dança ( o carnaval, sobretudo depois de combinados os festejos africanos e o ‘carnaval veneziano’ branco ); no plano do esporte ( o futebol ); no plano religioso ( por exemplo, a devoção dos caipiras de São Paulo por Nossa Senhora Aparecida, convertida em devoção nacional pela transformação da santa em Padroeira do Brasil; ou a espiritualização das religiões africanas, seu ‘embranquecimento’, convertidas em ‘sincretismo tipicamente nacional’). (p.92, 1986)
5.3 O Racismo à brasileira
O racismo brasileiro é bastante diferenciado do norte-americano, pois aqui ele é velado, é escamoteado, é escondido por trás do véu mítico da chamada "democracia racial" brasileira. É a tese conhecida e baseada em Gilberto Freyre, que afirma ser o Brasil um país tropical onde as raças misturam-se naturalmente, sendo o preconceito racial secundário. Fernandes (p.59, 1989) afirma que "o preconceito e a discriminação se ocultavam por trás do tratamento assimétrico, do branco da classe dominante (e de outros tipos de brancos)[…]". Uma outra visão afirma que o racismo é mecanicamente decorrente da pobreza, ou seja se um afro-brasileiro ascende na hierarquia social, ele deixa de sofrer o preconceito. Mas mesmo quando rompe o estigma de pobre, o negro continua a sofrer o preconceito. Na música Racistas Otários, o Racionais faz uma afirmação verdadeira:
"Os sociólogos preferem ser imparciais e dizem ser financeiro nosso dilema, mas se analisarmos bem mais você descobre, que negro e branco pobre se parecem mas não são iguais[…] No meu País o preconceito é eficaz, te cumprimentam na rua te dão um tiro por trás."
Poucos afirmam ser racistas no Brasil, mas muitos escondem o preconceito atrás desta máscara social "diplomática", ou melhor, hipócrita, que Mano Brown sintetizou bem na letra de RAP acima.
Em 1976, numa pesquisa nacional, o IBGE encontrou 136 definições de cor da pele, em todo o país. De puxa-pra-branco a burro-quando-foge, passando por trigueiro, turvo, branco-sujo, saraúba, lilás, baiano, canelado, azul, cor-de-cuia e até fogoió, o brasileiro se define como qualquer coisa, menos como negro. (PIMENTEL, p. 26)
É o que Darcy Ribeiro em sua obra "Povo Brasileiro" (apud PIMENTEL, p.26) chama de racismo assimilacionista ou seja:
se dilui a negritude numa vasta escala de gradações, que quebra a solidariedade, reduz a combatividade, insinuando a idéia de que a ordem social é uma ordem natural, senão sagrada. O aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é que ele dá de si uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições de terrível violência a que é submetido.
O racismo no Brasil é reforçado a partir da criação de estereótipos de beleza, nas novelas da TV principalmente, onde o galã branco de olhos claros é o protagonista e o negro sempre secundário. As mulheres negras quando não são empregadas domésticas, são mostradas numa sensualidade exótica como se a afro-brasileira só servisse para sexo, enquanto a branca, geralmente ingênua e doce, é a mulher digna de casamento. A nome da novela da Globo "Cor do Pecado" já diz tudo, apesar da trama trazer uma "preta boazinha" e uma "branca má", contrariando um pouco a mesmice "Global".
A questão da autovalorização como negro é ainda fraca, o rapper africano Len, da Guiné-Bissau, disse-nos que:
O que eu vejo é o seguinte, aqui no Brasil os próprios afro-brasileiros têm preconceitos em serem negros, em se declararem negros"
Len do grupo Dependentes
LEIA A PARTE 02 EM :
http://afrobrasileira.multiply.com/journal/item/14

Fonte: FACULDADES PORTO-ALEGRENSES – FAPA CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DO MUNDO AFRO-ASIÁTICO João Batista dos Santos Walter Günther Rodrigues Lippold

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