As cotas para negros no ensino superior e o biopoder
Há alguns anos vêm sendo discutidas as reservas de vagas (mais conhecidas como cotas) para negros nas universidades públicas do país. As cotas consistem em uma das modalidades das políticas de ação afirmativa para o combate à discriminação racial (uma das formas de manifestação do racismo) e são implementadas seja por força da autonomia universitária, ou através de leis estaduais que conjugam critérios monetários como forma de aferição da hipossuficiência dos candidatos a critérios étnico-raciais, dentre outras especificidades observadas em cada caso.
É importante destacar que a adoção dessas medidas somente pode ser compreendida no âmbito da resistência realizada com mais intensidade a partir da década de 1990, e protagonizada por jovens moradores das periferias e favelas de cidades como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Esses jovens, em sua maioria negros, mestiços e oriundos das camadas mais pobres da sociedade, imprimiram um caráter novo a um elemento da agenda política dos movimentos negros que pode ser observado, pelo menos, desde o período pós-abolição da escravidão no Brasil: o acesso à educação.
Este aspecto deve ser salientado, pois a educação sempre foi um dos principais eixos norteadores de movimentos tão distintos como a Frente Negra Brasileira da década de 1930, o Teatro Experimental do Negro surgido na década de 1940, ou o Movimento Negro Unificado da década de 1970. Além disso, sempre foi uma pauta importante para o movimento de mulheres negras que iniciou o seu processo de ruptura com o movimento feminista brasileiro, na década de 1980, e que se consolidou na década de 1990, ao se organizar, principalmente, sob a forma de organizações não-governamentais – ONG’s.
Neste sentido, a reivindicação de um acesso mais democrático ao ensino superior, principalmente nas universidades públicas brasileiras, questionou abertamente a estrutura racista de uma sociedade que, por meio de diversos dispositivos do poder estabelece novas formas de gestão da vida da população. Esta gestão da vida maleável, flexível relega grandes contingentes da população aos mais baixos estratos da sociedade. Além disso, perpetua a existência dessas desigualdades através de práticas e discursos que aliam as diferenças econômicas existentes entre os grupos sociais aos estereótipos étnicos e raciais, atribuídos principalmente a indígenas e negros.
Além disso, a resistência organizada através de pré-vestibulares populares, tais como o Pré-Vestibular para Negros e Carentes – PVNC, a Educafro e a Organização Steve Biko, embora tenham origens distintas e sigam caminhos, algumas vezes divergentes, inovaram ao suscitar questões relacionadas ao trabalho, à gestão dos territórios, à formulação de políticas públicas que não passavam necessariamente pelos sindicatos, partidos políticos ou pelo Estado. Seu discurso era centrado em uma concepção de cidadania que deveria ser conquistada a partir da organização coletiva e a cultura aparecia menos como reforço de uma identidade “racial” ou “étnica” homogênea e essencialista, do que uma afinidade compartilhada por estes jovens.
A partir desses movimentos, aos poucos foi aumentando o número de universidades públicas que aderiam à implementação das cotas como forma de reduzir as disparidades observadas no corpo discente, e o próprio governo formulou algumas políticas, ainda que limitadas, no sentido de ampliar o acesso desses jovens nas universidades, sobretudo nas instituições privadas. Entretanto, estas medidas têm sido questionadas maciçamente pela mídia e por grupos que vêem seus privilégios seculares ameaçados. É preciso evitar que os pobres, negros e mestiços venham disputar os espaços que sempre foram tranquilamente ocupados por determinados grupos da sociedade. O racismo brasileiro já não consegue manter sua aparente “cordialidade” (se é que se pode pensar em uma equação como essa).
Assim, multiplicam-se as ações judiciais questionando a legalidade e a constitucionalidade das cotas no ensino superior brasileiro. O Poder Judiciário é chamado a se pronunciar sobre o assunto e se aguarda ansiosamente a palavra final do Supremo Tribunal Federal, principalmente após as audiências públicas realizadas no mês de março deste ano, quando foram apresentados os argumentos contrários e favoráveis às cotas.
Ressalte-se que, no âmbito dos debates acerca das cotas, são mobilizados discursos favoráveis e contrários a essas medidas. No que se refere aos argumentos contrários às cotas, segundo Marcelo Paixão podem ser encontradas seis concepções distintas: liberal, democrático-racial, nacionalista, culturalista contemporânea, funcionalista, marxista e geneticista. Cada uma delas se baseia em perspectivas filosóficas que mobilizam a moral como principal fundamento dos discursos que pretendem a abolição do sistema de cotas das universidades públicas brasileiras.
Em relação ao debate jurídico em defesa das cotas, são mobilizados discursos filosóficos pautados no reconhecimento, tal como o de Axel Honneth, que reativa o pensamento do Hegel da juventude. Ou, ainda, em autores que buscam estabelecer uma conciliação entre reconhecimento e redistribuição a partir de uma operação que retira toda a dimensão ética da discussão, como defende Nancy Fraser. Outros procuram centrar sua defesa jurídica no âmbito das teorias constitucionalistas norte-americanas, como por exemplo, na teoria do impacto desproporcional e na da discriminação de fato.
Apesar de esses argumentos representarem avanços importantes para a defesa das políticas de ação afirmativa de combate à discriminação racial, notadamente, em relação às cotas para negros no ensino superior, percebe-se que encontram limites na medida em que fortalecem os discursos pautados na moral e, em última instância, toda uma tradição da modernidade que se baseia na filosofia da representação que serve de fundamento para os discursos contra as cotas. Além disso, contribuem para a subsunção da diferença à identidade na medida em que reforçam o estabelecimento de critérios que acabam renovando os estereótipos fenotípicos e culturais de certos grupos.
Dessa forma, é preciso pensar as políticas de ação afirmativa como parte de um processo mais amplo de constituição de uma sociedade diferente. Deve-se lutar por estas medidas não apenas porque se é negro, indígena, pobre, mas pelo direito de ser qualquer coisa que se desejar. É necessário conquistar e defender o direito à diferença para além das identidades que fixam os sujeitos nos seus lugares sociais. O recurso à identidade sempre pode ser manipulado no âmbito dos discursos e práticas engendradas pelo biopoder. A história já o tem demonstrado de diversas maneiras.
Vanessa Santos do Canto
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