quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Equidade e igualitarismo: Por quê os socialistas defendem as cotas?


“Se se entende que toda transgressão contra a propriedade, sem entrar em distinções, é um
roubo, não será um roubo toda a propriedade privada? Acaso minha propriedade privada não
exclui a todo terceiro desta propriedade? Não lesiono com isso, portanto, seu direito de
propriedade?” 1 (Karl Marx)
O limite político do liberalismo sempre foi a igualdade jurídica dos cidadãos. Os
cidadãos seriam iguais diante da lei, mas desiguais entre si. A igualdade possível seria
a eqüidade. A discussão das cotas abriu uma polêmica na sociedade brasileira, alguns
defendendo o princípio meritocrático, e outros defendendo as políticas afirmativas. As
cotas sociais e raciais são pequenas reformas ou medidas de emergência, um paliativo,
que não podem inverter a dinâmica decadente do capitalismo periférico. Mas, a
valorização progressiva que os socialistas fazem das cotas sociais e raciais só pode ser
contextualizada à luz de uma equação mais ampla: seu compromisso com a igualdade
social.
Iguais e diversos
Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às
características de uma natureza humana invariável – o homem como lobo do homem -
o liberalismo fundamentava a justificação do capitalismo na desigualdade natural.
O marxismo percebia que os homens eram, ao mesmo tempo, iguais e desiguais.
Reconhecia que a humanidade era diversa, os seres humanos possuindo capacidades e
talentos variáveis, sublinhando, porém, que as necessidades mais intensamente
sentidas eram iguais. Mais ou menos inteligentes, mais ou menos corajosos, todos os
seres humanos compartilharam, geração após geração, uma experiência comum: a
necessidade de alimentação, vestimenta, abrigo, aprendizagem, segurança e diversão
foram iguais para todos.
O programa socialista inscreveu na História a necessidade da luta contra a propriedade
privada para defender o direito à vida. O socialismo elevou o direito ao trabalho, à
moradia, educação, transporte e lazer, como a missão fundamental da vida civilizada,
e o sentido da história pelo qual vale a pena lutar. A universalização dos direitos
sociais remete ao cerne do projeto socialista: a luta pela liberdade humana, em que o
trabalho deixe de ser um castigo para os explorados, e passe a ser a plena realização
do potencial criativo de busca de conhecimento, beleza e solidariedade.
1 MARX, Karl, Os debates na Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha, in
Escritos de Juventud, México, Fondo de Cultura Econômica, 1987, p.251.
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A luta contra as opressões é indivisível da luta contra a exploração
Os socialistas insistem na centralidade da luta contra a exploração, reconhecendo a
legitimidade das lutas contra a opressão. Os argumentos dos que defendem a
eqüidade, a igualdade de oportunidades contra as cotas, diminui a radicalidade do
combate pela igualdade social. A igualdade jurídica é o limite teórico do liberalismo. O
socialismo quer mais.
A sociedade burguesa histórica nunca pode realizar sequer a eqüidade. Em país algum,
os cidadãos são iguais diante da lei, porque os donos do capital podem mais. Ser
branco pobre no Brasil, nunca foi o mesmo que ser negro pobre. A igualdade de
oportunidades não pode corrigir, em prazos breves, estas desigualdades. Apresentar
aos trabalhadores negros o mesmo programa que se apresenta aos trabalhadores
brancos significa calar sobre sua condição.
O marxismo defendeu que a passagem a uma sociedade socialista deveria ser
compreendida pelo critério de distribuição de “cada um segundo suas capacidades, a
cada um segundo suas necessidades”, construído pela socialização da propriedade.
Seu objetivo é a gratuidade da alimentação, da educação, da saúde, dos transportes
ou do lazer. A distribuição segundo a satisfação das necessidades exigirá, portanto, ir
além do regime do trabalho assalariado. O trabalho no socialismo deixará de ser um
martírio, para alcançar o estatuto de plena realização humana. Os marxistas nunca se
iludiram, todavia, que este princípio organizador da distribuição pudesse ser
implantado imediatamente, ou à escala de um só país.
De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado
O marxismo propôs como princípio de distribuição para uma sociedade de transição
“de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”. Mas a
eqüidade é ainda uma igualdade formal. Ao reconhecer que a distribuição seria
regulada segundo o trabalho realizado, portanto, salários desiguais, os socialistas
estavam admitindo uma distribuição desigual, transitoriamente, o que é o mesmo que
aceitar algum critério de racionamento. A questão colocada seria como definir os
produtos e serviços que seriam racionados, e quem os receberiam.
Os socialistas reconheceram que a diminuição da desigualdade social impulsionada
pelo princípio de distribuição meritocrático – a tirania do esforço ou do talento – não
garantiria ainda a igualdade social, porque estaríamos diante de um tratamento igual
para os desiguais, perpetuando-a. Trabalhos diferentes, pela complexidade da
educação exigida, ou pela intensidade do desgaste ou ainda do perigo, não poderiam
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ter salários iguais. Aceitaram a necessidade de seleção para o acesso às melhores
oportunidades. Descartaram o sorteio porque seria ainda pior, premiando o acaso, e
desqualificando o sacrifício ou a capacidade.
A igualdade social é, contudo, um objetivo superior à igualdade de oportunidades. A
meritocracia considera de forma igual os desiguais. Os socialistas defendem que, em
uma sociedade desigual, para que se diminuam as diferenças sociais, não bastaria a
equidade, seria necessária tratar de forma desigual os desiguais. Admitiram, portanto,
fatores de correção social e culturalmente progressivos dos critérios meritocráticos.
Essa discussão, as discriminações positivas para aqueles que foram vítimas de
opressões seculares, surgiu a propósito das reivindicações das mulheres e dos setores
mais explorados dos trabalhadores, mas o critério é o mesmo quando discutimos o
racismo.
Cotas são justas, porém insuficientes
No Brasil do início do século XXI a mobilidade social é muito pequena. O capitalismo
periférico mantém taxas de crescimento que não superam as taxas de natalidade, o
desemprego oscila dento de margens muito elevadas, e os salários médios ora ficam
estagnados, ora caiem. A escolaridade média não supera os seis anos, quando já
atingiu os doze anos na Europa do Mediterrâneo e os dezesseis anos na Europa
nórdica. Pelo menos metade da população brasileira com mais de quinze anos de idade
é iletrada, ou seja, não reconhece sentido no que lê. O governo Lula foi incapaz de
inverter o sentido histórico decadente que se abate como um flagelo sobre a população
brasileira. As cotas são um bombom em um bolo envenenado: a reforma universitária
que legaliza a transferência de verbas públicas para o ensino privado, através do
Prouni, anistiando as dívidas fiscais de um setor que estima faturar dezenas de bilhões
de reais em 2006.
Todos sabemos que os inscritos no vestibular de acesso às universidades públicas têm
igualdade de condições formais, portanto, abstratas, porque a seleção será decidida
favorecendo os que tiveram melhores condições de preparação. As políticas afirmativas
de cotas de acesso ao ensino público ou aos concursos públicos para afrodescendentes
corrigem, parcialmente, mas corrigem, um obstáculo que só é invisível
para os que secundarizam o racismo.
Opor às cotas a bandeira do acesso livre para todos parece um argumento razoável,
mas não é. O ensino de qualidade significa a desmercantilização de uma das
necessidades humanas mais sentidas. Nem um governo dos trabalhadores, pelo menos
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nas fases iniciais da transição ao socialismo num país como o Brasil, poderia garantir
acesso irrestrito ao ensino superior para todos, ou em qualquer curso.
O que se está defendendo contra as cotas, portanto, não é acesso universal, mas um
critério de seleção, o meritocrático. Este critério é mais justo do que o racionamento
pelo preço das mensalidades – a seleção determinada pelas diferenças de classe –
mas, isso não faz dele um critério igualitarista. Igualitarista é tratar de forma desigual
os desiguais, favorecendo os mais explorados ou oprimidos. Os defensores da
meritocracia estrita propõem à juventude operária e negra que estudem mais, fazendo
mais cursinhos, e tentem o vestibular outra vez. Esta política não muda nada. A
eqüidade é socialmente regressiva. Privilegia o acesso dos mais preparados, ou seja,
dos filhos dos setores sociais mais instruídos, excluindo os filhos dos trabalhadores e
os negros. O seu resultado será o isolamento político-social dos que defendem as
Universidades públicas, como a USP, as Federais e os CEFET’s, beneficiando a
campanha pela cobrança de mensalidades e, finalmente, a privatização.
As políticas afirmativas para os filhos dos trabalhadores, vítimas da exploração social,
e para negros e indígenas, vítimas de uma opressão específica, são insuficientes, mas
justas. Por quê as universidades devem se abrir para os trabalhadores é um tema que
nem mereceria polêmica: porque o abismo social brasileiro é indecente. Mas por quê
as cotas para negros e indígenas são justas? Porque, apesar das diferenças raciais
serem biologicamente irrelevantes, política e culturalmente elas não podem ser
ignoradas, seriamente, em um país marcado pela herança da escravidão negra. Os
negros são, inquestionavelmente, a parcela mais explorada do proletariado. Não
importa qual é a proporção dos negros sobre o conjunto da população. O que importa
é que eles são os menos instruídos e os que realizam os trabalhos mais mal
remunerados.
Ignorar a condição oprimida específica da população negra, em nome de um programa
comum de todos os trabalhadores contra o capital, não vai construir a unidade da
classe trabalhadora, mas a sua divisão. O racismo no Brasil não é uma invenção dos
líderes dos movimentos negros. Se os socialistas não defenderem, conseqüentemente,
um programa contra o racismo, agora e já, e não depois da conquista do poder, e
derem as costas para suas reivindicações – entre elas as cotas - estarão afastando
estes movimentos da luta unificada dos trabalhadores. A demissão dos socialistas da
luta contra a opressão estará favorecendo o surgimento de um movimento negro sob
influência de lideranças anti-socialistas.
As políticas de cotas são insuficientes, porque não podem mudar, substancialmente, a
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condição do negro sob o capitalismo. A igualdade social só será conquistada quando
todos os que assim quiserem - sem seleção pelo mérito ou por sorteio - possam
realizar seus estudos superiores, e existam vagas suficientes em universidades com
ensino de qualidade equivalente, ou seja, no socialismo. A juventude negra só terá um
futuro melhor se unir sua luta com toda a juventude trabalhadora, A libertação dos
negros só será possível com a libertação do povo brasileiro.
Valério Arcary é professor do CEFET/SP, é autor d’As esquinas perigosas da história,
e do conselho da revista Outubro.

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